A vingança do robô que ainda não existia
Depois de muitas lições de inglês com o professor Gene – americano de Oklahoma, típico vermelho pimentão, sorriso largo e deboche pronto, parecido com aqueles caras que comandam altas operações atrás de uma mesa do FBI headquarters; gostava de um bom bourdon on the rocks – fui fazer curso de inverno na UCSD, a Universidade de San Diego, na Califórnia. Ele sugeriu hospedagem em casa de família, para ter contato com a língua em tempo integral, eu topei.
Juntos, escolhemos as vítimas: Lynda e Mike, simpático casal com dois filhos que estudavam fora. Moravam só com a mãe dela, Mary, e o gigante cachorro Beny, num casarão perto da praia. Cheguei numa quarta-feira; as aulas iam começar na segunda, e antes, no domingo, havia Super Bwol. Lynda explicou que receberia dois casais para assistirem a grande final e se encarregaria do almoço. Fiz a simpática e me ofereci para preparar comida brasileira.
Estudei as adaptações dos ingredientes e cheguei à conclusão que o prato mais próximo do tradicional seria uma moqueca com arroz de alho. Compramos tudo e quando fui assumir a cozinha ela começou a me dar lições de como ligar o fogão, o exaustor, abrir a geladeira, usar o liquidificador – achei estranho tanta explicação para manuseio de equipamentos simples, mas, ouvi tudo e segui as orientações, que cessaram na lava-louças. Fiz bonito e meu conceito alcançou nota máxima. Não sobrou espinha de peixe para contar a história.
Com a moral nos píncaros, Lynda já me olhava diferente e até ofereceu me levar de carro no primeiro dia de aula para que eu me familiarizasse com o trajeto. Tudo lindo. Antes da saída, na gelada segunda-feira, mais aulinhas sobre o funcionamento da casa – ligar as luzes, a TV, o aquecimento, usar as chaves – ah, muito importante, nunca entrar de sapato. Eu não podia, mas Beny sim. Saia para passear e circulava por todos os cômodos com as mesmas patas gigantes sujas da rua.
Nas primeiras noites, quando voltava da UCSD, jogávamos palavras cruzadas, ótimo para o meu aprendizado, bebericávamos um vinho e íamos para o ofurô – programa de índio, já que ele ficava fora da casa, onde a temperatura trincava. “Já viu dessa banheira?”, perguntou ela. “Sim, no Brasil também temos!”, respondi. Observei troca de olhares surpresos à minha volta. O quarto da filha do casal onde eu dormia, na verdade era um depósito de coisas esperando desapego. Entre elas um livro grosso me chamou a atenção: “How to teach your dog to behave”. Na verdade, acho que eles ainda não haviam lido, pois Beny, definitivamente, não tinha modos.
No correr dos 40 dias, nas minhas folgas da escola, ia às compras – dólar camarada e muita coisa para ser adquirida. Comprei logo um saco daqueles antigos, com possibilidade de extensão, que ficaria do meu tamanho quando cheio. Na lista, tênis e perfumes para todos, camisas Polo Ralph Lauren e o que mais encontrasse de pechincha nas lojas-paraíso que atendiam pelo nome de “Dress for Less”. E a bag só enchendo. Havia também tranqueiras para enfeitar a casa – panos indianos, sininhos tailandeses, falsas porcelanas chinesas. Sempre que chegava com as compras, gostava de fazer um inventário do que havia possuído e Mike perguntava: “Vocês não tem acesso a tênis por lá”? “Sim, mas custa caro, assim como todos os itens”, respondia.
No dia anterior ao meu retorno teve festa de despedida na UCSD. Fui para a casa da família americana já de noite fazer algo que me dá prazer: um apanhado geral das aquisições e a arrumação das bagagens: a mala gigante que eu havia levado, o saco com extensão e mais uma mala de mão. Mike brincou que o avião não iria decolar com tantos pertences. Terminei a organização e pedi algo para limpar o resto de embrulhos e etiquetas. E ele me apresentou seu último trunfo: um aspirador de pó.
Só que daquela vez, antes de ele me ensinar a usar, meu santo baixou: “Ah, não se parece em nada com o que minha mãe tem. O dela é bem mais compacto. Na verdade é um pequeno robô que sobe as escadas varrendo e desce higienizando. Tem um dispositivo que se adapta às quinas etc”… a media que ia descrevendo até aonde o inglês me permitia, fazia teatro-demonstração. Senti que Lynda estava imóvel e Mike havia parado de mastigar a espécie de salgadinho de milho que, em harmonização com a cerveja, lhe garantia pronunciada barriga – que o próprio Beny não tinha.
A noite foi encerrada ali mesmo, mas ele se comprometeu a me conduzir até o aeroporto na manhã seguinte. Algumas observações sobre minha temporada, silêncio sepulcral na maioria do percurso. O casal se despediu de mim com uma certa melancolia, mandou beijos para o meu marido, minha família e lembranças para o robô – hoje equipamento fácil em qualquer loja e coqueluche da internet. Se os conheci bem, devem adquirir um a cada nova versão. Só para se vingar de mim.