quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Casa tem alma

 

Noemi Almeida — A chegada da estrada de ferro, a política de interiorização, a Marcha para o Oeste, a Usina do Rochedo e a inauguração de Brasília foram fatos marcantes que contribuíram para o desenvolvimento da jovem capital.

 

A grande arrancada para Goiânia se tornar uma das mais belas capitais do país se deu na década de 60. No início dos anos 60, a jovem capital do cerrado já contava com cerca de 150 mil habitantes. Uma explosão de crescimento! Era Brasília pulsando em Goiás, nossa terra querida. Goiânia crescia em ritmo acelerado. Mais de uma centena de novos bairros surgiram.

 

The Beatles, Rolling Stones eram os conjuntos musicais de sucesso, além do twist.  Modo de vida livre e a contracultura imperavam. Um novo estilo de vida surgia no jeito de vestir,  na arquitetura e decoração, o que influenciou  até mesmo no mobiliário das casas mais requintadas.

 

Os dourados Anos 60!

E é em um desses novos e afastados bairros de Goiânia que começo a contar minha história de menina moça. Meus pais eram bem ligados aos primos. Nós morávamos no centro. A casa dos meus tios estava localizada em um setor novo, com poucas construções e ainda nenhum prédio.

 

O conceituado doutor Wanderly Juvenal Dutra, médico, dermatologista, era  proprietário da bela e moderna casa. Meu tio. Era um homem de vanguarda, inteligente, com visão modernista, pois tinha trazido a cultura do Rio de Janeiro, onde cursou medicina, na UFRJ.

 

Ao voltar para Goiânia, casou-se com a bela Angela Valadares Dutra, pedagoga, professora universitária, uma fina mulher da sociedade goianiense. O casal se afinava, se moldava e se complementava no amor. Com poucos anos de casados, já habitavam uma bela residência.

 

Me recordo que era uma casa alta, ampla e bem moderna. Uma grande rampa nos levava a uma enorme sala de visitas. Os móveis eram estilo retrô, linhas arredondadas, pés bem finos, pareciam palitos. Rncostado à parede lateral, havia um grande sofá colorido, várias mesinhas com finos enfeites sobrepostos,  abajures e um grande tapete compunham a belíssima decoração.

 

Na época eram comuns as casas de paredes coloridas. Mas essa casa não! Todas as paredes eram pintadas com tinta a óleo de cor clara. Na minha visão de criança, a casa parecia um palácio. Um luxo só!

 

Toda a casa era um luxo só! Mas a sala….Ah! Essa era puro luxo! Em frente ao moderno sofá ficava a televisão gigantesca. Ainda não conhecíamos controle remoto, mas meu tio espirituoso e brincalhão, dizia: “Vou fazer uma mágica, a TV vai mudar de canal sozinha. E plim, o canal mudava!”

 

Como assim?  Para mudar de canal, tem que ir lá na TV, apertar um botão e aí sim, o canal mudava. Tia Angela dizia: “Faz aquela do baralho”…  e a carta desaparecia.

 

Mais de meio século depois, já em 2024, fui à minha médica ginecologista Elizabeth Tavares para consulta de rotina. Ela me pediu uns exames de imagem. No dia seguinte, com o pedido de exame em mãos, desci uma quadra, na mesma rua onde moro, e entrei na clínica.

 

Apesar de morar bem próximo, passar sempre na porta, visualizar a fachada, (hoje uma clínica de imagem) fiquei mais de meio século sem entrar na tal casa, que com certeza marcou minha vida para sempre.

 

Suspirei fundo, clamei por coragem e entrei na tal casa. Subindo a mesma rampa de outrora, um turbilhão de lembranças me invadiu. Ao entrar na sala encantada, tive certeza que a vida não acaba com a morte. Ela continua viva na memória dos que ficaram.

 

Me apresentei no balcão e me sentei novamente.  Enquanto eu aguardava ser chamada, fiquei absorta em mil lembranças. As memórias ganharam vida! Revivi cada cena, ali vivida há mais de 50 anos.

 

Logo fui atendida.

Sra. Noemi?

Já?  Minha vez?

Sim. O médico já a aguarda.

Entrei receosa, pois sabia que estava indo em direção aos quartos, aliás, suítes.

Incrível! Tudo na mesma disposição! Nenhuma parede foi derrubada.

 

Depois de preparada para os exames, entra o médico:

Bom dia Sra. Noemi

Olho pra ele e reconheço um rosto bem familiar.

Nossa! Dr. Georthon Júnior?

Sim. Sou eu.

Que sorte a minha! O médico é ligado à minha família.

 

Durante o exame, contei minha saga na casa. Conversa vai, conversa vem, ele já sabia da minha história. Ao terminar o exame, o médico disse:

A Sra. quer ver a casa?

Se não for incômodo para o senhor, quero ver sim.

 

Quanta emoção! A batida do coração era quase audível de tão forte. Meus olhos estatelados observando cada centímetro dos cômodos. As mãos tremiam, os pés suavam. O emocional foi a mil, a cabeça girou, relembrando cenas ali vividas. Quanto tempo!

 

Como a memória é incrível e parece ter várias gavetas. Estava tudo ali, guardadinho! Cada fato trancado em uma gaveta. O que se vive na infância, torna-se imortal!

 

Começamos pelo quarto do meu primo Moacir. As gavetas da memória foram abertas. Pânico? Emoções? Sei lá. Um emaranhado de sentimentos. Arrepios, sorrisos e lágrimas. Vi até os brinquedos e a organização do quarto.

 

Ao lado, a suíte dos meus tios. Olhei para a máquina de ressonância magnética e todo meu corpo estremeceu. Parece que todas as almas que ali viveram, vieram me saudar.

 

Senti um enlace por trás: tio Wanderly? Percebi o vulto, mas ao olhar para trás,  desapareceu… Casa tem alma?

 

Emocionante! Soltei um fino grito, não sei se de pavor, saudade, pânico ou alegria. Fiquei até meio zonza com tantas emoções! Senti como se a vida tivesse sido suspensa. Eu via as almas na casa! Nos ciclos da vida, uns vão, outros ficam, uns deixam saudade, outros fazem história.

 

O quarto de hóspedes onde ficavam tios Moacir e Maria Dutra, agora ocupado por aparelhos de imagem, me encheu de nostalgia. Ao passar pela cozinha, eu inebriada por todas as lembranças, cheguei a sentir o aroma dos deliciosos quitutes. E a comida síria! Senti o gosto, pois a família Rassi morava em frente e todo dia era festa de sabores.

 

Em meio aos meus devaneios, dr. Georthon me pergunta:

A senhora quer descer?

Quero sim. Uma lágrima rolou na minha face.

Respirei fundo, desci pela mesma escada de antes, arrepiando até o último fio de cabelo.

A lavanderia não existe mais! Virou refeitório! Eu, tomada por fortes emoções, saio da casa pelo portão dos fundos, com um firme propósito de escrever esta história.

 

Alguns dias depois, encontro meu irmão Hélio Júnior e começo a contar a minha saga pela casa. Engraçado como entramos no túnel do tempo, destravando memórias.

Ei mano, você se lembra do seu padrinho nos fazendo de bocós?

Claro! O truque da TV, ainda em preto e branco, mudar de canal sozinha e de longe, marcou minha infância.

Mana, e os fins de semana, você se recorda como eram?

Sim, me recordo bem. Tenho doces lembranças das reuniões de família e dos muitos médicos que frequentavam a casa.

Era uma casa bem movimentada. O casal recebia muitas visitas e fazia muitas festas.

 

E as festas, você se lembra como eram?

Ah! Essas ficaram engavetadas.

 

As festas juninas são nossas mais vívidas lembranças, pois a casa era distante, as ruas sem asfalto, e podíamos enfeitá-la com bandeirolas e acender fogueira. Ansiosos, aguardávamos chegar o Dia dos Santos, festeiros de junho.

 

Me lembro das noites frias quando crianças e adultos esfregavam as mãos e se aproximavam da enorme fogueira para se “Quentar com o fogo”. Que mágico era se aquecer naquelas labaredas imensas! Já pular fogueira era coisa só para gente grande.

 

Literalmente, mergulhamos no túnel do tempo. Fluía a conversa com meu irmão. Falamos com a linguagem da época e até as gírias vieram à tona.

 

Mana, como eram as festas infantis? Você se lembra?

Tá lelé da cuca? Pensa se não ia me lembrar daquela festa de 8 anos do meu primo Moacir!

Naquela época, festa com carrinho de picolé e cachorro quente era novidade. Pegávamos um picolé e “sebo nas canelas”, como se tivéssemos de pagar. Para nosso espanto, tudo era grátis. Era festa de criança.

Larga de “papo furado”, mana, era mesmo assim?

Você não se lembra, pois era muito pequeno.

 

Eu, a mais velha da turma, já entrando na adolescência, me lembro até de um menino que flertava comigo, “um pão”.

Mesmo mana? E as festas 1001 noites?

Ah, essas nunca fui, só ouvia falar que dançavam valsas, boleros, olhando nos olhos. Soube também que eram regadas a uísque, finos canapés e muitas risadas.

 

Além das festas, me recordo bem dos altos papos literários. Eu e Eliana França, sobrinha da tia Angela, falávamos sobre o livro que estávamos lendo: Machado de Assis, José de Alencar, William Shakespeare, Edgar Allan Poe e outros clássicos. Tínhamos de estar com a leitura em dia para saber comentar.

 

Creio eu que a alma aloja-se no cérebro de outras vidas e no tempo certo elas ressurgem.

 

Desta forma, as boas lembranças ficam impregnadas e fazem a alma das casas. Se antes eu já pensava assim, depois daquela inesperada e emocionante visita minhas convicções foram reforçadas.

 

Com o passar dos anos, vamos escrevendo nossa história, deixando um legado de memórias para as gerações futuras.  O tempo passou e com ele aprendi que a morte é certa; só não sabemos por quanto tempo estaremos vivos neste planeta.

 

O propósito de ser feliz é pra hoje! Nada pode ser adiado.

 

Ame hoje! Perdoe hoje! Viva o hoje, o agora. Deixe para trás as experiências que ficaram no pretérito. Fique com o perfume do momento, deixado pelas flores do jardim da vida.

 

As gavetas ficaram entreabertas para reencontro com o passado. Meses após, reencontrei Eliana França e Maria Helena (do Elmo, cunhada da tia Angela). Trocamos mensagens por whatsapp falando da casa e dos tempos idos.

 

Meu sentimento hoje é de amor e gratidão por todo o aprendizado. A casa dos meus tios ficou marcada em um rico baú de memórias e jamais será esquecida.

 

E você, qual marca quer deixar?

Já pensou nisso?

 

Aquela visita me trouxe saudosas recordações, pois éramos ligados pelo amor, pelo sangue e pela convivência. A casa que outrora era tão distante, atualmente é bem próxima ao centro de Goiânia e permanece intacta. Só a fachada foi modificada, para adaptar-se à clínica de imagem.

 

Está localizada na Avenida B, Setor Oeste, em frente ao Hospital Geral de Goiás- conhecido HGG. A uma quadra do Parque Zoológico e a apenas duas quadras da minha residência atual.

 

Tão perto e tão longe!

 

Mais de meio século nos separaram, até que eu tomasse coragem para lá voltar.

Resgatei um saudoso passado longínquo.

O querido casal só não foi feliz para sempre porque meu tio, um homem forte, cheio de vida, quem diria, teve uma morte súbita e precoce. Um infarto fulminante o retirou do nosso convívio aos 39 anos de idade.

 

Hoje não tenho mais dúvidas.

Casa tem alma.

 

Noemi de Almeida. Goiânia, maio de 2024.

Ilustra: O Quarto em Arles (1888), de Vincent van Gogh.

Este post foi escrito por: Noemi Almeida

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2 comentários em "Casa tem alma"

  • Vera Vieira! disse:

    Que lindo Noemi!! Sempre que passo na porta me lembro da Ângela !!!
    Belas recordações! Casa tem alma, sim. Principalmente quando se viveu bons momentus!!!

  • Lucia Frsnça disse:

    Lendo sua crônica , caminhei com você pela casa da tia Ângela , lembranças maravilhosas. Eu era mais nova , mas tudo que você descreveu está aqui na memória e no coração. Obrigada por este presente.

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