segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Do Lago de Braies ao céu aberto das Dolomitas em gelada barraca

 

Marcio Fernandes – Alta Via 1, dia 1. Dormi menos de quatro horas na noite passada em Belluno, Itália. Ontem, eu estava tenso e com muito medo, embora a cidade seja uma pintura a céu aberto emoldurada pela parte oriental da Cordilheira dos Alpes. Eu e Maurizio Sponga, 67 anos, tiramos o dia para encontrar os equipamentos adequados para fazer a Alta Via 1, trilha de Alta Montanha na região do Tirol Sul, chamada Dolomitas, cujo cume está  a 3,1 mil metros de altitude. Serão 125 quilômetros de caminhada no topo do Continente Europeu em provavelmente dez dias de sobe e desce montanha na paisagem que Le Corbusier classificou de a “obra mais bela da arquitetura mundial.”

 

Esta não é minha primeira experiência de hiking em montanha, mas nem no sonho alguma vez precisei usar cordas, mosquetões, cadeira de sustentação e capacete. E dormir em barraca na natureza selvagem, pois não há lugar de hospedagem em nenhum dos poucos refúgios instalados neste ecossistema que já foi um glaciar de 150 mil hectares de área.

 

 

Maurizio é experiente alpinista italiano, conhece a região como poucos e me convenceu a fazer a Alta Via 1 em 2018,  mas aí veio a pandemia e alterou tudo. A decisão de vir pra cá neste agosto foi meio estabanada e com zero de planejamento. A ideia era navegar com utilização de mapas físicos, bússola e altímetro de aplicativo, mas simplesmente por aqui não há sinal de internet.  Não foi exatamente um problema, pois a Alta Via 1 é demarcada em campo. O problema expressivo para mim foi a decisão mais do que equivocada de carregar mochila com peso em dobro do meu limite corporal de seis quilos.

 

A Ala Via 1 teve início na esplendorosa beleza do Lago de Braies e depois seguiu serpenteando as montanhas escarpadas de calcário no sentindo Norte-Sul. O primeiro trecho foi de extenuante subida de cinco quilômetros com ganho de altitude de aproximadamente mil metros. O terreno muito irregular de pedras trituradas e blocos de rochas exigiu muito vigor físico. O resultado foi minha progressão foi muito abaixo do esperado e precisei também do dobro do tempo para chegar ao cume da montanha, a 2.380 metros de altitude.

 

 

Eu cheguei super moído e desorientado de cansaço. Não pude escutar música porque precisava economizar bateria para fotografar e escrever. Também pela razão fundamental de segurança física. Em hiking de alta montanha é regra fundamental prestar muita atenção em cada passo na trilha estreita plena de abismos. Queda por aqui significa resgate de helicóptero e envio do corpo para crematório.

 

Também é prudente manter os ouvidos ocupados aos avisos dos ventos que desenham na atmosfera as nuvens determinantes da cobertura de sol, das precipitações de chuva e da regulação da temperatura ambiente, fatores de sobrevivência essencial para quem vai dormir no gigantesco céu aberto das Dolomitas.

 

 

Atravessamos dois pequenos paredões de Via Ferrata, nome dado aos cabos de aço cravados na rocha para auxiliar a subida, mas não foi necessário utilizar os mosquetões.  Para ganhar tração eu cravava o cajado no solo rochoso, o que consumia ainda mais energia. Depois, o problema foi experimentar a primeira descida até o Refúgio Biella com o sobrepeso da mochila. La Madrasta II abriu a caixa de maldades e criou um efeito pendular sobre minha coluna e tive de ter muito cuidado para evitar queda grande e de consequências de previsível gravidade.

 

Nas Dolomitas, as marcas geológicas do poder devastador da última deglaciação  estão em vários formatos nas montanhas. É incrível observar as rochas calcárias dobradas em camadas ou torcidas em forma de rocambole. Nos arredores, blocos de pedra gigantescos se sobrepõem como se tivesse havido um tsunami. Além disso, o processo erosivo expõe vários cristas e pináculos nos cume das montanhas em escultural apresentação da natureza.

 

 

Depois de sermos recebidos em alto nível no Refúgio e dado uma forrada com sanduíche de omelete, seguimos em direção ao Refúgio Sennes na esperança de descolar comida farta e nutritiva. Qual o quê! A proprietária em singular humor descartou todo mundo e disse que a comida era reservada para quem estava hospedado. A saída foi deixar o local o mais breve possível para ter luz do sol na armação do acampamento.

 

Uai, não é fácil encontrar alguns poucos metros quadrados de terreno plano para montar a barraca em montanha pedregosa. Após andar quase 14 km em 9 horas, encontramos local bacana no sopé da majestosa montanha Gran Pareis, seguindo grupo de franceses que estava na nossa mesma temerária situação. Escrevo às 20h33, morto de cansado e com muita fome! A temperatura cai vertiginosamente à medida que o sol se põe. Deve chegar perto de zero na madrugada. Tenho na barraca cama inflável, cobertor, saco de dormir e agasalho de montanha. Estou com medo de hipotermia. Descolei umas duas doses de whisky Bourbon que só serão aplicadas em caso de última necessidade. Tudo que eu queria agora era cama quente e comida. Vai ficar só na imaginação, assim como o banho que hoje faltou e não tem data para ser efetivado.

 

Texto e fotografias Marcio Fernandes

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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