sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Em busca da perfeição do azul em Chefchaouen

 

Marcio Fernandes – Eu deixei Fez bem feliz com o andamento da viagem ao Marrocos ouvindo Tigresa com Gal Costa. Estávamos em uma van de 20 lugares em direção a Chefchaouen, onde azul encontra as tonalidades da perfeição. Estou meio que sentido falta de alguma coisa que não o sei o quê. Pode ser do meu quarto em Pirenópolis, pode ser do caldo de cana do patriota da Praça Tamandaré, pode ser porque La Madastra II está no porta-malas do veículo. Gosto dela perto de mim e ao alcance da vista.
Pela rodovia estreita e sem sinalização horizontal, a van segue cruzando densos olivais como nas terras semiáridas da Andaluzia.

 

 

O pessoal destas terras escassas de água se vale de burricos para locomoção há centenas de anos e se defende do sol com muitas camadas de roupa. Ahmad, auxiliar do motorista, camarada boa praça, conversa mais do que o homem da cobra, por isso estou só alegria com o fone de ouvido bem alto. Morro de medo de estrada e acho que o ar condicionado poderia estar mais agradável.

 

Se é verdade a frase de Nelson Rodrigues segundo a qual “todo magro é canalha”, também vale a interpretação extensiva de que todo gordo é prevenido. O paquistanês acima do peso, ao meu lado, trouxe um ventilador portátil. Prevenido e bonachão, o cara certamente deve ser craque no preparo de kebab de carneiro. Até agora, só tomei antipatia de alemã com boca de feijoada, servida para quatro talheres, que não para de ouvir mensagens do celular.

 

 

Ahmed fez a primeira parada na estrada em local com vista panorâmica da Barragem Sidi Chahed, onde há uma dezena de barracas de artesanato berbere e muitas cabaças em exposição. Acho esse nome de sonoridade sensacional. Hoje à noite vou encher a cabaça de vinho para me despedir do Marrocos. Para o pessoal não ficar de saliência comigo nesta conversa de Neymar, por eu ser brasileiro, já disse que não gosto de carnaval, futebol e caipirinha.

 

 

Duas horas de viagem e começa a subida da montanha. A estrada fica bem sinuosa e tem piso hiper mal arrumado. No Marrocos, os caras se utilizam da tecnologia brasileira meia boca de tapar buracos no asfalto. No lugar da cova se formam ondulações perigosas e não sei o que é pior. Filha, acho que você iria ficar bem enjoada, como na infância, quando o Luiz Carlos no carro a chamava de urubu novo. Teria uns 87,9% de chance de vomitar no colo do casal de chilenos.

 

Não está na hora de ouvir Joan Baez para não prejudicar a fase de otimismo pleno. Aqui rola Kid Abelha com a voz miúda da Paula Toller no começo de carreira. Na poltrona 4, a italiana das pernas longas e piercing no nariz decidiu levantar o vestido de hiponga até as coxas. Certamente, a finalidade é refrescar a perseguida no calorão que faz no interior da van. Não vou dar opinião sobre o procedimento da moça. Tenho amiga super debochada que fez um glossário com 137 alcunhas para a mencionada parte. Não sou ligado a arrependimentos, mas veio a sensação de que deveria ter tomado suco de romã expremido a mão na primeira parada.

 

 

Como se não a conhecesse, Britz fez uma lista do que não pode ser tocado no Spotfy em nossa viagem: Marisa Monte, Djavan, Chico Buarque e, principalmente, Caetano Veloso. Sururu, pode Gonzaginha? Uma música! Britz faz almoço em casa escutando os caras do Bolsonaro todo dia a falar a mesma conversa de que houve fraude eleitoral. Não adianta eu dizer que o Bolsonaro é super excomungado e fez esforço descomunal para perder a eleição.

 

De novo, Ahmed promoveu uma parada e tive de fazer um pagamento grande para dois franceses que tentaram furar a fila do caixa com picolé à mão. Não se fura a fila na qual está instalado neto de Carlota de Melo com a paciência mais pra fraca. Esse pessoal tem de desconfiar. A última hora de viagem foi de serra e curvas fechadas. O motorista às vezes
errava a tangência e dava aquele gelo na coluna. Risco desnecessário.

 

 

Ao chegar em Chefchaouen, fomos de imediato explorar a medina mais linda do mundo islâmico. Absolutamente deslumbrantes os vários tons de azul pintados nos muros, portas e janelas do casario, especialmente da Mellah, antigo bairro judeu. Não há presença de nenhum deles por aqui, no entanto os muçulmanos se orgulham dos tempos em eles viviam e trabalhavam juntos, inclusive dividiam as mesmas casas.

 

 

As labirínticas ruelas da medina são limpas e repletas de lojas de tapetes super qualificados e muita joalheria em prata da cultura berbebe. A cidade foi fundada em 1471 pelo Mulá Sidi Ali Ben Rachid para proteger a rota comercial Fez-Tetuan do imperialismo português estabecido em Ceuta, na extremidade Norte do Marrocos, hoje território espanhol no país africano.

 

 

As múltiplas tonalidades de azul foram trazidas pelos judeus sefarditas expulsos da Espanha no ano de 1492, a partir do Decreto de Alhambra, assinado pelos Reis Católicos Fernando e Isabel. O azul significa o céu, o encontro com Deus e a liberdade. Hoje é a grande atração da cidade e simboliza a expressão máxima da beleza unicolorida desta cidade encravada nos contrafortes das Montanhas do Rife.
Apesar de ser essencialmente muçulmana, em Chefchaouen o infiel a Alá pode perfeitamente circular sem restrições, desde que mantenha o respeito às tradições religiosas.

 

 

O ponto alto da cidade é o complexo de torres de Alkasaba, hoje museu etnográfico com jardins e fontes no interior do edifício. É muito bacana observar as senhoras de burca a fazer autoretrato tendo ao fundo as paredes azuis, algo absolutamente impensável em outras partes do mundo islâmico. A turistada acha lindo passear com chapéus típicos dos beberes, parecendo personagens de Maracatu. Eu vim em busca do azul e o encontrei nos tons mais perfeitos que a criação atingiu ao se aproximar do criador.

 

Fotografias e texto: jornalista Marcio Fernandes

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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6 comentários em "Em busca da perfeição do azul em Chefchaouen"

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