quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Em La Paz, sob a guarda do Monte Illimani e a bênção da Pachamama

 

Marcio Fernandes – Tão logo você chega à La Paz, Bolívia, é impossível ficar indiferente à majestade do Illimani, montanha com 6.348 metros de altitude em relação do nível do mar. Para se ter noção da sua grandiosidade, o maciço rochoso tem uma elevação superior à capital administrativa do país de 2,7 mil metros e seu cume atinge mais do que o dobro da altura do Pico da Neblina, ponto culminante do Brasll.

 

É tão alto que o aquecimento global ainda não conseguiu derreter a geleira que cobre as bordas da boca deste extinto vulcão. O glaciar, mesmo em abril, começo de outono no hemisfério sul, se mantém acima da cota dos 4,5 mil metros e assim confere beleza extra ao Illimani, o guardião de La Paz.

 

Eu cheguei à cidade ainda pela manhã em voo da Companhia Boliviana de Aviación. Sim, as aeronaves são muito velhas, algumas são sucatas adquiridas da massa falida da Varig, extinta há 14 anos, mas funcionam perfeitamente.

 

 

A tripulação é atenciosa, competente e muito educada. Houve certa emoção na aterrissagem em La Paz por conta da sensação de que iria faltar pista devido à velocidade de aproximação da aeronave no solo. No final, não houve mortos, feridos ou desaparecidos no procedimento de pouso arriscado.

 

Eu deixei a mochila no hotel e fui logo bater perna no Mercado das Bruxas, principal atração do centro histórico. O nome faz sentido por haver muitos estabelecimentos que vendem artigos religiosos especialmente da nação Aymara. Entre os produtos expostos na fachada se destacam feto de lhama e o rico artesanato em tecelagem.

 

 

Chamado de sulu no idioma quechua, o feto é dado em oferenda à Pachamama, divindade da cultura indígena que representa a terra em sentido universal, com tudo que nela habita, bem como provê a fertilidade a humanos, bichos e plantas.

 

A Pachamma faz um bom trabalho, pois o tempo todo você encontra “cholas” a carregar bebês e crianças de rosto arredondado e bochechas rosadas. Eles são muito lindinhos, mas é considerada uma ofensa grande fotografá-los dentro dos confortáveis aguayos, mochila típica da região andina. Por outro lado, as cholas mudam o comportamento arredio ao estrangeiro a partir do momento em que você elogia a beleza das crianças.

 

No sobe-desce ladeira das ruas que envolvem o Mercado das Bruxas, o domingo na feira distribuída nas calçadas era de intensa atividade comercial. É impressionante a diversidade e a quantidade de gêneros alimentícios providos pela generosidade da Pachamma. Nunca vi nada igual na escala dos produtos oferecidos no comércio de comida de rua.

 

 

Os legumes são de encher os olhos e dar água na boca. Já as bancas de tempero se encarregam de espalhar os aromas no ambiente. Uma coisa muito interessante é o fato de as bancas serem majoritariamente dirigidas por mulheres, na maioria cholas, devidamente bem vestidas com arcada dentária coberta de prata e chapéus coloridos.

 

Enquanto nos países árabes a mulherada rala e os maridos dão expediente em botequins a fumar e beber café, em La Paz eles carregam fardos de mercadorias com volume de 200 litros e alguma coisa próxima de 100 quilos. É aquela coisa assustadora em forma de trabalho degradante, mas faz parte do ambiente urbano paceño.

 

Para se fazer um conhecimento grande da região em pouco mais de uma hora, de forma independente e sem esforço físico, o caminho é pegar as linhas conectadas do teleférico que opera um trajeto circular sobre a cidade. Não tem erro. É só você descolar um mapa e seguir a coloração das linhas nos vagões suspensos.

 

 

É o meio de transporte público mais eficiente de La Paz, justamente por estar fora do arranjo caótico de carros e ônibus que se amontoam nas ruas orientados pelo buzinaço. É incrível como não há acidente, pois os veículos que trafegam nas vias radiais podem ter o curso bloqueado por quem vem na rua perpendicular. Consegue dar andamento ao trajeto quem tem a buzina mais estridente.

 

Praticamente em todo centro de La Paz as lojas estabelecidas nos imóveis possuem as portas fechadas e o comércio se concentra na borda das calçadas. Não se trata de algo ambulante. As bancas das cholas, a oferecer de ervas medicinais a sutiã, são permanentes e algumas a própria moradia das vendedoras.

 

Trata-se de lenda urbana a conversa de que as cholas têm o hábito de arregaçar a saia, ficar de cócoras e defecar nas ruas. Agora, não tem como desconhecer o aroma penetrante e perene de xixi em putrefação que domina paisagem da cidade.

 

 

Este caráter aromático ganha mais complexidade quando há combinação de chorume, esgoto doméstico e caldo de peixe em putrefação. A dica para se conhecer essa extraordinária atração turística de La Paz é visitar o Mercado Rodriguez ali pelas 14 horas.

 

Não deixe de provar por lá as empanadas de frango e o suco das frutas de estação processado na hora. É tudo muito natural e tem a cobertura invisível da fuligem dos veículos erguida do asfalto esburacado. Só não pode observar o material orgânico negro contido debaixo das unhas crescidas das cholas.

 

Uma das coisas mais pitorescas e funcionais do ambiente urbano de La Paz são os micros decorados em cores vibrantes. São ônibus de pouco mais de 20 lugares adaptados no chassi de caminhões dos anos 1970.

 

 

Eles conectam o centro à periferia de bairros incrustados nas montanhas, cujas casas de três pavimentos ou mais em tijolo aparente lembram muito as favelas do Rio de Janeiro. Há uma diferença muito importante em relação à Rocinha ou ao Borel. Não se trata de favela com território dominado por traficantes ou milícias.

 

Ao contrário, nestes bairros, o mais comum é encontrar trabalhadores honestos e crianças de escola pública rigorosamente uniformizadas. Eles que têm muito orgulho de ter no fundo da casa a majestade do Illimani. Católicos apostólicos romanos em maioria, eles acreditam mesmo é na proteção mística da Pachamma.

 

Fotografia e texto: Marcio Fernandes

Avatar

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

4 comentários em "Em La Paz, sob a guarda do Monte Illimani e a bênção da Pachamama"

Deixe uma resposta