sábado, 27 de julho de 2024

Eu queria abrir a carta que a Isaurinha Garcia queimou

 

Marcio Fernandes – Não fosse o calor que derretia o ar-condicionado, foi suave o sonho que tive ontem à tarde. Não me lembro exatamente de todos os detalhes, mas o sumário do fato inconsciente foi que eu recebi uma carta. O envelope era branco, manuscrito com caneta Parker 51 em letra de normalista, tinha selo carimbado nos Correios e estava recheado com uma correspondência de umas três laudas. Devia ser uma carta grande, com relato profundo de alguém provavelmente a me revelar segredos, declarar desejos, lamentar perdas, dizer adeus. Podia até ser de um testamenteiro conservador a relacionar lista expressiva de bens de uma herança deixada por parente distante. Não dá pra dizer.

 

Como não era uma carta datilografada, não havia nada a temer de uma correspondência oficial, por exemplo, intimação para comparecer à Chefatura de Polícia ou da universidade dizendo que eu havia sido jubilado. Tenho sonho recorrente e pavoroso de que não terminei a Faculdade de Direito. Só não era uma carta psicografada, pois não acredito nestas bobagens. Infelizmente, não consegui abri-la, pois o sonho rolou quando eu estava bem no fim de uma sesta grande que durou até 16h40. É nisso que dá ser aposentado no exercício regular da preguiça.

 

Quem tem mais de 60 anos é do tempo em que se namorava por carta. A carta de amor era um documento que selava as intimidades encantadoras e absolutamente reservadas. Falava dos momentos passados juntos e de criativos planos para os beijos do próximo encontro. Como é da natureza da carta, sempre havia no relato um pretexto para mal estar, que podia ser um bolo de chocolate que ela fez num dia de coração furioso e guardou pro destinatário um pedaço mordido por outro alguém; só para espezinhar. A chegada da carta de amor era aquele momento mais desejado depois da aula na faculdade. Quem não ficou na porta de casa esperando, com batimento cardíaco acelerado, a passagem do carteiro?

 

Me lembro do meu pai tocar na radiola Telefunken, de válvula, Mensagem, com Isaurinha Garcia. A música era de uma melancolia paralisante sobre uma carta de amor que nunca foi aberta como a do meu sonho. No final, a linda Isaurinha expande a voz decepcionada sobre um piano triste a cantar:

 

“Quanta verdade tristonha,

Ou mentira risonha, uma carta nos traz…

E assim pensando rasguei, tua carta

E queimei, para não sofrer mais.”

 

A música brasileira, que precede a Bossa Nova, falava de sentimentos sofridos e paixões decepcionantes. Era só tristeza. Depois da batida de João Gilberto e da incorporação das letras de Ronaldo Bôscoli e Vinícius de Moraes, o amor ganhou a alegria do verão emoldurado na Baia da Guanabara com as mulheres mais lindas a passar pela Ipanema otimista dos Anos JK.

 

 

A primeira carta que um adolescente dos anos 1970 mais temia era a da Convocação de Alistamento Militar. Puta que pariu! Os milicos não davam moleza nem pra classe média. Se teu pai não conhecesse um capitão do Exército, pelo menos para te tirar da fila dos convocados, você iria ficar um ano batendo continência no sol e no sereno. Eu achei que iria ser convocado mesmo, pois me alistei no mesmo quartel em que meu avô foi preso político e tudo que a gente queria era distância de militar. Era mais mania de perseguição, uma vez que o Sistema Nacional de Informação (SNI) era uma rede de mexericos e informações inúteis de fichários de jornais que usava muito pouco de inteligência.

 

A carta era uma maneira eficiente de se comunicar com a família quando se estava distante. De mandar as boas novas para um amigo que foi morar longe. De dizer coisas que a timidez não permitia mesmo no filme Love Story, na matinê do domingo. De realmente externar a dor dos pêsames em longo sofrimento sentido que não pôde ser dito no telegrama fatal. As cartas eram obras literárias, como as que o Luiz Gravatá encontrou, em esquecida gaveta, enviadas por Rubem Braga, Bernardo Élis, Fernando Sabino, Ana Maria Gonçalves, Antônio Houaiss e, é claro, teu compadre Jorge Amado.

 

O Brasil se comunicou por cartas até a privatização do setor de telecomunicações na Era FHC. O telefone era um bem material caro, restrito à classe média mais pra alta mesmo. Uma linha custava na época coisa de uns três mil dólares. Era um ativo que devia ser declarado no Imposto de Renda. Como o serviço de telefonia estatal era incapaz de atender ao consumidor, havia um mercado negro tolerado de linhas telefônicas que controlava os preços. Como o dólar na Argentina hoje.  Além disso, as ligações interurbanas eram muito caras. Queria namorar à distância? Ou você tinha a malandragem de falar ao telefone público trapaceando o lance da ficha não cair, como fazia um amigo mala, ou mandava carta.

 

Não havia coisa pior do que uma carta não correspondida. Aquela espera inútil era algo que te fazia odiar os Correios por acreditar que a culpa era do carteiro. Não era, como depois me ensinou Ninguém Escreve ao Coronel, um conto longo sobre a decadência e a frustração de quem espera uma carta. A Carta Testamento foi a pior correspondência que o Brasil recebeu em toda sua história. Na carta, que não era epitáfio, Getúlio Vargas escreveu a mensagem mais dolorosa do mundo de quem diz ao seu povo que “Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço minha morte.” Isso foi há muito tempo, agora eu gostaria só de voltar no sonho e abrir a carta que a Isaurinha queimou.

 

Marcio Fernandes é jornalista

 

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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