terça-feira, 21 de outubro de 2025

Na livraria da Amazon, amor tem idade e etiqueta etária

 

Renata Abalém –- A Amazon inovou: em uma nova seção da sua livraria intitulada “Romance da Terceira Idade”, juntou obras cujos protagonistas estão adoecidos, extremamente nostálgicos, visitando suas memórias, cuidando de netos: em uma dessas obras, a sinopse dá conta que os personagens principais estão decididos a se eutanasiar, haja vista que um deles está com doença terminal. Invariavelmente, essas obras contam histórias adivinhem de quem? De idosos.

 

Aparentemente inofensiva, talvez até bem-intencionada, a categoria expõe uma ferida simbólica difícil de nomear. O incômodo que me atravessou não é apenas de ordem estética; é jurídica, ética e, sobretudo, humana.

 

O que se revela ali não é só um capricho do algoritmo. É, antes, o reflexo de uma sociedade que insiste em dividir o sensível por faixas etárias, como se o amor maduro precisasse de uma prateleira própria. Como se Eros envelhecesse.

 

Mas talvez o incômodo mais profundo venha da memória da literatura. Penso em Dom Quixote, velho cavaleiro que via no amor e na fantasia a própria razão de existir. Que diria ele ao ver seus devaneios confinados a uma aba etária?

 

Ora, a literatura não envelhece.

 

Quem envelhece é o leitor e mesmo assim, só no corpo, porque a alma, ah! A alma! Ela continua sendo o mesmo espelho que refletiu um Dom Juan, cansado e lúcido, olhando para o tempo como quem ainda deseja incendiar o mundo.

 

A mesma alma sensível, a de um Hemingway, fez o mesmo com Santiago, em O Velho e o Mar: o homem que, diante da finitude, ainda pesca o impossível.

 

Machadão, a primeira alma imortal brasileira, tem hoje 186 anos (mas ainda é chama), e leva a discussões tusculanas, deixando Cícero para trás: traiu ou não traiu?

 

Ora, a literatura sempre foi o contrário da segmentação: ela é o encontro do universal no íntimo. Foi escrita por velhos, jovens, mortos, imortais. Homero, seja lenda ou não, era um ancião quando recitou A Odisseia, e dela nasceu o mito da volta e do amor. Tolstói, já idoso, deu à humanidade A Morte de Ivan Ilitch, uma meditação sobre o sentido da vida. Gabriel García Márquez, em O amor nos tempos do cólera, lembrou-nos que o amor pode florescer tanto aos setenta como aos dezessete. Se esses autores dependessem de uma etiqueta etária, talvez o mundo tivesse menos beleza e mais burocracia.

 

Há, portanto, uma diferença entre visibilidade e guetificação. Dar destaque a autores idosos é nobre; criar um “espaço exclusivo” para histórias sobre idosos é condenar essas mesmas histórias a um subgênero que não existe. O amor, o desejo e o reencontro pertencem à literatura universal, não a uma planilha de marketing.

 

O direito brasileiro, ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III, CF), impõe um limite moral ao mercado: ninguém pode ser transformado em categoria de consumo por envelhecer. Quando o comércio editorial decide segmentar afetos, ele não organiza, ele separa.

 

Meu incômodo, confesso, é com a sutileza do preconceito. Não há ofensa explícita, mas há o gesto simbólico de quem diz: “seu amor é outro, sua emoção é outra, sua história cabe em outra prateleira”. Ora, a literatura não cabe em prateleiras: ela cabe no humano. E o humano, se ainda souber ler o tempo com delicadeza, há de lembrar que envelhecer não é se tornar outro, é se tornar mais.

 

Sob a ótica do Direito do Consumidor, a questão é mais séria do que parece. O artigo 37, §2º, do Código de Defesa do Consumidor proíbe toda publicidade que “discrimine pessoa em razão de raça, cor, etnia, religião, origem ou qualquer outra forma de discriminação”. Essa cláusula aberta inclui, com clareza, a discriminação etária, o chamado etarismo. Ao criar uma seção que isola narrativas de afeto e desejo vividas por personagens idosos, a plataforma arrisca-se a transformar em nicho o que é essência humana.

 

A Constituição Federal, no artigo 3º, inciso IV, reforça o mesmo princípio: promover o bem de todos, sem preconceitos de idade. O amor, o romance e o sentimento não conhecem calendário. Ao classificá-los como produtos “para terceira idade”, o fornecedor invade um território simbólico que o direito protege: o da igualdade de acesso ao sensível.

 

Nem falo dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

 

Aqui consultando alguns pares: A Feia de Scliar – de A mulher que escreveu a Bíblia, Woland de Bulgákov, velho como os dias, Halim, Domingas e Cordovil do Universo Hatouniano, Raimundo Gaudêncio, o analfabeto de Stênio Gardel, e a jovem anã de As Primas da idosa Aurora Venturini, penso eu, ou melhor, pensamos nós, que a Amazon, gigante internacional, pisou num terreno universal.

 

Deveria aprender com Proust: “Les vrais livres sont des enfants non du temps, mais de la durée.”

 

“Os verdadeiros livros são filhos não do tempo, mas da eternidade.”  Tradução Mario Quintana (Globo, 1954)

 

Este post foi escrito por: Renata Abalém

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2 comentários em "Na livraria da Amazon, amor tem idade e etiqueta etária"

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