Não saia de casa sem o trevo de quatro folhas
Era 14 de fevereiro de 2020 quando saí de um hotel nos arredores de Charles De Gaulle para pegar o vôo Paris-São Paulo, às 20 horas. Como havia me recusado a encarar problemas durante a viagem entre França, Luxemburgo, Áustria, Espanha e Israel, com minha amiga Eliene (Camila) Cinquetti – principalmente às que se referiam a um vírus mortal que saiu da China, mas ganhou o circuito Elisabeth Arden – me assustei porque todos no aeroporto, e não apenas os chineses, como de costume, estavam usando máscaras. A coisa era séria! (Mas o problema da volta estava longe de ser esse).
Comprei mostardas variadas no duty free e me sentei, num bar bacana, na área de embarque, ao lado de um músico brasileiro que mora na Irlanda e de um irlandês amigo dele. Estavam vindo para o verão brasuca. Pedi uma taça de vinho; eles um uísque cada. Conversamos sobre os mil pubs de Dublin, onde já tomei muita Guinness e ouvi bastante música Celta, e eles me inteiraram sobre a gravidade da crise sanitária que se espalhava pelo mundo.
No decorrer da conversa, notei o irlandês inquieto. Vez e outra ia na lojinha e voltava com uma sacola – mais tarde saberia que não era mostarda, mas garrafinhas de uísque Jameson, patrimônio etílico da Irlanda. Embarcamos. Jantar, mais uma taça de vinho, ida ao toalete para escovar os dentes, luzes apagadas. Minha expectativa era acordar só em território nacional com a potencialização do efeito álcool-altitude, como sempre acontece.
Passava um pouco da meia-noite quando acordo súbito com gritos e pancadas. O irlandês – moço bonito, do cabelo encaracolado, olhos claros, gigantes e brilhantes – havia entornado suas aquisições (não me ocupei em apurar quantas foram) junto com alguns comprimidinhos para dormir. Mordeu o peito da comissária de bordo, deu um soco no comissário engomadinho – tinha a cabeleira organizada pelo gel e o entrevero provocou um desalinho na onda frontal, ou topete – e estava chamando o resto dos passageiros para a briga.
O comandante veio achando que tomaria as rédeas da confusão. Também levou um safanão! Meio debilitado, o supremo mandatário da viagem perguntou no sistema de som se alguém conhecia aquela fera-ferida brava, indomável. O amigo brasileiro, que estava em fileira diferente, se encolheu na cadeira e me deu uma olhada que interpretei como um pedido de clemência pelo anonimato – nessa hora, claro, todos já haviam se levantado e assistiam, atônitos, aos bizarros acontecimentos a doze mil pés de altura. Não entreguei o compatriota.
E o cara continuava a se debater e bater nos outros. Diante da incontrolável situação, o comissário-chefe pegou o manual e leu para todos, um trecho que dava a ele o direito de aplicar um “sossega leão” no sujeito, resumindo a operação. Assim foi feito. Já estamos falando de mais de 2 horas da manhã. Adiantou nada! Recorreram, então, aos cinturões de segurança extras para imobilizá-lo. O capeta no couro não deixou. Ele se estrebuchava – àquela altura do campeonato as três poltronas eram só dele – e gritava: “Let me go, please! Fuck you! I want my rights!”, enquanto todos já estavam esgotados de cansaço, olheiras no queixo.
Foi quando introduziram na boca do irlandês um guardanapo de tecido da primeira classe. O inferno, que era para terminar, na verdade começava ali. Às 5 da manhã, aterrissamos em Fortaleza para que as autoridades pudessem enquadrar o sujeito antes de seguirmos viagem para São Paulo. Mais de duas horas em solo para os procedimentos protocolares. Lá ele ficou. Chegamos ao destino e exatamente todos que tinham conexões dançaram. Eu mesma consegui pegar um vôo para Goiânia no início da noite, depois de me instalar num day use de Guarulhos para me recompor. E nada mais soube sobre o irlandês, que nunca deveria ter saído de casa sem um trevo de quatro folhas.
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