“Nunca houve ameaça de golpe no Brasil”
Marcio Fernandes — O advogado Ovídio Martins de Araújo pertence à quarta geração de juristas que se estabeleceu em Goiás quando aqui não havia Faculdade de Direito. Sempre que conversa sobre história traz à memória o ex-ministro da Justiça, Saulo Ramos, proa de razão e conhecimento. Competente, culto e um dos maiores advogados do Brasil, Ovídio sustenta que a ameaça de ruptura da democracia no início de 2023 não passou de pirotecnia da esquerda e da direita. Ele acredita que a Justiça brasileira está aquém da demanda da sociedade e acha o politicamente correto muito chato. Na entrevista, o ex-procurador Federal, que deixou o alto escalão do serviço público em Brasília (DF) para ser essencialmente advogado, tem currículo diversificado. Além do êxito nos tribunais, Ovídio participou decisivamente na demarcação das terras Yanomami nos anos 1980 e teve convívio fraterno com os grandes nomes das artes plásticas de Goiás, como Frei Confaloni, Cleber Gouvêa, D.J. Oliveira, Antônio Poteiro e Siron Franco.
BBnewsEntrevista – Você acredita que algum momento houve risco de ruptura institucional, aí incluída aquela patacoada de 8 de janeiro, ou tudo não passou de um teatro bilateral dos envolvidos?
Ovídio Martins – Nunca acreditei em risco institucional. Sempre sustentei que aquilo era pirotecnia da direita e da esquerda. Eu trabalhei muito tempo na Presidência da República, após a redemocratização, e convivi bastante com os militares. Aprendi a entender como funciona a doutrina militar. Nunca confiei que as forças armadas fossem se filiar a um projeto totalitário.
BBnewsEntrevista – A democracia se basta na Constituição ou ela precisa de guardiões na prática de atos administrativos e jurisdicionais espetaculosos?
Ovídio Martins – A democracia é um exercício perene, permanente, dos agentes políticos, administrativos, mas acima de tudo do povo. É muito dinâmica e deve ser renovada no dia a dia, sob pena de surgirem filosofias mirabolantes que conseguem inebriar parte da sociedade em expedientes de enganação.
BBnewsEntrevista – A liberdade de expressão era bem clara e exercida antes de o Brasil se dividir. Hoje existe evidente tutela dos opostos ao direito de opinião. Aonde isso vai nos levar?
Ovídio Martins – Eu acho o tal do politicamente correto muito chato. Não é de hoje que venho observando essa questão aí dos “nós contra eles.” Primeiro da esquerda contra a direita. Depois esse discurso do governo que acabou de sair querendo criar dois Brasis em um Brasil só. Aquilo que a gente aprendeu, desde pequeno, que a minha liberdade vai até aonde começa a liberdade do outro, é uma verdade inteira. Existe um direito posto, legislado, um direito positivo. E existem as relações intersociais. A gente tem de saber muito bem interpretar não só a Suprema Corte, que é guardiã da Constituição, mas também onde existem os direitos da individualidade, do exercício do devido processo legal e da liberdade de expressão. Na realidade não são garantias antinômicas. São garantias harmônicas. Agora, liberdade de expressão é uma coisa. Já práticas criminosas são outra muito diferente.
BBnewsEntrevista – Ovídio, mas não há um apelo midiático, uma sensibilidade exacerbada no que se refere a gênero, raça e comportamento etc. E aí a autoridade encarregada de investigar a conduta condena antes de apurar. Você não vê isso aí?
Ovídio Martins – Um amigo muito grande, Dr. Saulo Ramos, foi ministro da Justiça (Governo Sarney), um grande jurista, dizia o seguinte: “A democracia é o porre e a ditadura a ressaca!” Hoje temos todos esses direitos procurando encontrar os seus devidos lugares. E com atores que não guardam muita pertinência ao homem médio, ao homem comum. Então há uma exacerbação aí de conduta de parte a parte.
“O Brasil é um País cartorial. Tudo tem dono e precisa de um carimbo para ser validado.”
BBnewsEntrevista – No senso comum, no Brasil o Direito Penal não pune o crime e o Direito Civil não repara o dano material corretamente. Por que, ao contrário das grandes nações do Ocidente, o sistema brasileiro não é funcional?
Ovídio Martins – Acho que nem em tudo está perdido. Acontece é que Judiciário brasileiro, em face de países avançados, é muito deficitário, apesar do grande custo operacional. Eu me lembro bem de uma cidade alemã, do porte de Goiânia, que tinha 800 juízes. Aqui o número de magistrados é muito menor. Por outro lado, desde a Constituição de 1988, os cidadãos aprenderam a exercitar os direitos na Justiça. Isto causou um assoberbamento da máquina e acabou por culminar nessa sensação de injustiça, de que nada se resolve. Eu não posso falar do Direito Penal, que não é minha área, mas no Direito Cível a demanda aumentou muito. Já estrutura do Poder Judiciário não cresceu na mesma proporção. E não por falta de vontade do próprio Judiciário. Também não pode virar o que eu chamo de “jurispreguiça”. Súmulas que impedem tribunais reapreciar causas de outras instâncias. E tudo virou estatística. O ministro fulano dá tantos mil despachos por mês. O desembargador julga tantos recursos por semestre ou ano. O cidadão não quer saber de estatísticas.
BBnewsEntrevista – Você acredita que a incapacidade do Brasil de ser um País de ponta se deve ao fato de o brasileiro, da elite ao favelado, ter a cultura de tratar a lei como um mandamento flexível e sujeito à vantagem pessoal?
Ovídio Martins – Tudo isso passaria pelo lugar-comum da educação, mas o problema é muito mais grave do que isso. Além de sermos um País deseducado, cada um quer fazer a sua própria lei. Veja o trânsito. Não há corporação de controle da mobilidade urbana capaz de conter a quantidade de infrações que são cometidas. O brasileiro não dá bola para lei. Estamos vendo o ex-primeiro mandatário no caso das joias. Como o exemplo vem de cima, há efeito pedagógico da transgressão da norma. O direito positivo, que é bom-senso legislado, tem eficácia contida no Brasil. Eu cumpro o que eu quero e não cumpro o que não quero.
BBnewsEntrevista – Ovídio, Não é um abuso a taxação dos cartórios no Brasil que esfola o pagador de impostos e é danoso para a economia ao influenciar no Custo Brasil?
Ovídio Martins – O Brasil é um País cartorial. Tudo tem dono. Eu me lembro de personagem de Jô Soares que falava da carimbática. Tudo tem de bater um carimbo. Observe que a tentativa de remover os embaraços cartoriais vem de 1980, com o ministro da Desburocratização, Hélio Beltrão. Mais de 40 anos depois, a gente continua envolto em um cem número de exigências, todas elas com custo. Trata-se de um componente do Custo Brasil que atrapalha o ambiente de negócios e a vida do cidadão comum.
“Eu nunca fui procurado por um cliente que dissesse que ele estava errado”
BBnewsEntrevista – A internet mudou o rumo de muitas profissões e algumas foram extintas. Em que medida a Idade da Informação alterou a prática da advocacia?
Ovídio Martins – Eu fui um dos primeiros escritórios de advocacia de Goiás a ser informatizado, ao mesmo tempo em que o do Dr. Felicíssimo Sena. Medalhões diziam que a informática iria acabar com a advocacia. A Era da Informação trouxe muitos benefícios, como o processo digital. Eu sou do tempo em que o processo tinha tanto papel que era costurado. Sou do tempo da máquina de escrever e do papel carbono. Já tive muitos processos manuscritos. Tem um senão da minha parte. Uma sustentação oral feita na tela de computador não é a mesma coisa daquela que é feita perante um Tribunal. Neste ponto, o poder de convencimento do advogado perdeu muito.
BBnewsEntrevista – Em um País com mais de 30% de analfabetos funcionais alguns operadores do direito ainda falam em latim. Não daria para simplificar a linguagem para que houvesse um entendimento mais claro?
Ovídio Martins – O latinório foi abolido da legislação brasileira, mas ainda muita gente que se mantém parnasiana. Eles acreditam que o convencimento processual está na linguagem rebuscada. Eu estudei latim no Ateneu Dom Bosco. Existem muitas expressões em latim que são difíceis de ser traduzidas. Agora, não tem cabimento em chamar de erga omnes uma decisão cuja tradução é valer para todos. Com a devida venia, tem muita que coisa que precisa ser extirpada.
BBnewsEntrevista – Qual é o melhor cliente do advogado: o que esconde o delito evidente ou que confessa a culpa insuspeita?
Ovídio Martins – Isso é mais no Direito Penal. Agora, eu sempre digo que o cliente tem de que ser convencido de que, além da própria mãe, só o advogado nele deposita confiança. Temos todas prerrogativas constitucionais da advocacia. Assim, para exercemos a defesa nos seus devidos limites, temos de saber da verdade. Eu nunca fui procurado por um cliente que dissesse que ele estava errado. E olha que sou um processualista civil. E meu colega, do outro lado, de igual forma. Quem decide é Poder Judiciário. O empate nas causas é o acordo.
“O brasileiro não dá bola para lei. Eu cumpro o que eu quero e não cumpro o que não quero”
Fotos: Marcio Fernandes
Nossa, quanta saudade sentia do dr Ovídio. Parabéns pela bela entrevista!
Excelente pauta, Marcinho. Vc sempre nos surpreende. Te amo❤️