sábado, 27 de julho de 2024

Nunca mais

 

Ricardo Pedreira – Sou contemporâneo da ditadura de 64. Nasci em 1955, portanto tinha 9 anos quando aconteceu o golpe. Cresci, amadureci, fiquei adulto, comecei a trabalhar, casei e tive filho durante o regime militar. Sou um típico brasileiro de classe média desse período.

 

 

Lembro que, quando menino, meus pais desaprovavam o regime, falavam com saudades do Juscelino e faziam piadas sobre os militares que nos governavam. Mas suponho que, como grande parcela da classe média brasileira daquela época, rejeitavam os rumos do governo deposto do Jango. A História mostra que houve muito apoio civil ao golpe, talvez esperando que fosse uma intervenção rápida. A História mostra também que nunca é assim. Durou o tempo de uma geração, a minha geração.

 

 

Morávamos em Brasília quando aconteceu o golpe. Nos meses seguintes, meu irmão e eu ouvíamos nossos pais lamentarem as cassações de políticos, alguns que eles conheciam pessoalmente. Poucos anos adiante, foram cassados ministros do Supremo, o que horrorizou meus pais. Muitos anos depois, meu irmão e eu ouvíamos conversas meio escondidas sobre uma prima nossa, de São Paulo, que militava contra o regime e havia sido presa e torturada. Começamos a entender que a barra estava pesada. Foram os chamados “Anos de Chumbo”.

 

 

A televisão e o rádio se referiam ao regime como a “Revolução de 64” e um jingle cantava que éramos um país que ia para frente. Carros circulavam com plásticos nos vidros: “Brasil. Ame-o ou deixe-o”. Adolescente, eu já sabia que muita gente havia mesmo deixado o país, mas não porque quisesse.

 

 

Foi mais ou menos nessa época – final dos anos 60, início dos 70 – que comecei a ler os jornais que chegavam em casa e passei a comprar o Pasquim. Não perdia um número, vibrava com as ironias contra o governo, com os cartuns cheios de malícia, com as longas entrevistas; sabia quando o jornal tinha sido recolhido nas bancas pela polícia. O bom humor era uma forma de resistência. Surgiram outros jornais do que se chamava de “imprensa alternativa”, como O Movimento e Opinião, que denunciavam a tortura, a corrupção e o modelo econômico concentrador de renda.

 

 

Em 1971, fui passar as férias do verão no Rio de Janeiro, quando Chico Buarque lançou Apesar de Você. Driblando a censura, que julgou tratar-se de música de amor ressentido, Chico dava um pau certeiro no governo. Cantávamos o samba na praia, ouvindo no radinho, com um sorriso de satisfação cúmplice de quem estava, de alguma forma, afrontando e enganando a ditadura. Eu e minha turma nos achávamos muito espertos… Enquanto isso, rapazes e moças um pouco mais velhos do que nós partiam para a luta armada.

 

 

No final da década de 70, já adulto e jornalista, colegas veteranos contavam histórias sobre a censura, que não estava mais dentro das redações. Começava a tal distensão lenta e gradual, depois que os militares entenderam que o festejado milagre havia ido para o brejo. A inflação iniciava a escalada que iria nos maltratar durante os anos seguintes, sobretudo aos mais pobres, vitimados também pelo desemprego.

 

 

Passei a fazer a cobertura política do Palácio do Planalto e do Congresso, e pude ver de perto o fim do rodízio de generais que comandavam o país. Eu estava lá, como repórter, nos últimos anos do governo Geisel e em todo o período do governo Figueiredo, aquele que pediu para ser esquecido. Estava lá na campanha das Diretas Já, na derrota das Diretas Já, na eleição indireta de Tancredo Neves, na morte de Tancredo, na posse de Sarney.Vi de perto os militares devolvendo a batata quente para os civis.

 

Essa batata quente é nossa, é de todos. O país só irá mesmo para frente no voto, na democracia, nos erros e acertos da democracia.

 

Seguimos aos trancos e barrancos. Tivemos um pesadelo recente e o caminho é incerto. Mas o triste é ver tanta gente querendo retomar a direção apontada em 64. Nunca mais.

 

 

Este post foi escrito por Ricardo Pedreira, 69 anos, jornalista

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Este post foi escrito por: Britz Lopes

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4 comentários em "Nunca mais"

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