domingo, 8 de dezembro de 2024

O golpe de 64 e eu

 

Demóstenes Torres – Aos três anos, em 1964, aportei em Goiânia. Meu pai era um comerciante de boa envergadura para Anicuns, uma cidade pequena, mas tradicional. Muito próxima de várias outras importantes (especialmente Goiânia e Goiás). Ele deixou tudo para trás com um único objetivo: fazer com que todos os seus filhos estudassem. Éramos dez: dois haviam morrido no início da década de 40; um de sarampo e outro de difteria. Não existiam ainda as vacinas apropriadas. E minha mãe arrumou mais um, o Alexandre, que naquela época se chamava de filho de criação.

 

Meu irmão mais velho, nascido em 1937 (se fosse vivo teria 87 anos), era o encarregado de nossa educação e formação cultural. Na minha época, as crianças entravam na escola só aos 7 anos de idade. Quase todas as minhas irmãs eram professoras, de modo que aprendi a ler e escrever antes de entrar no grupo escolar municipal José Feliciano Ferreira, em 1968.

 

Recordo-me dos amigos do meu irmão, que era Lacerdista, mas que já fora comunista, que se escondiam lá em casa por um período, depois sumiam e davam lugar para outros.

 

 

Vem à memória vivamente os muros pintados com a frase: “Ditadura Costa e Silva”. Antes, ainda, me lembro dos aviões que passavam sobre o quintal na deposição de Mauro Borges, o governador de então.

 

Na escola se estudava canto orfeônico e educação musical, resquício do esforço hercúleo de Villa-Lobos.

 

A merenda era algo à parte. Comíamos pão com carne moída ou sopa, com as verduras que os mais abastados levavam. Para beber, leite em pó com suas caixas estampando duas mãos entrelaçadas e uma frase: “Aliança para o progresso”.

 

Dois eventos nesse período: o prefeito de Goiânia, Iris Rezende Machado, iria inaugurar um parque inspirado na Disney, o Mutirama, e instituiu um prêmio, em 1969, para que os dez melhores alunos da rede municipal de ensino pudessem desfrutar nas férias de todos os brinquedos gratuitamente, fiquei entre eles. Só que Iris foi cassado, mas felizmente o interventor prosseguiu com a premiação e pude me esbaldar.

 

 

O segundo foi a Copa do Mundo de futebol de 1970. Lembro-me minuto a minuto de cada jogo e para mim foram os atletas mais espetaculares de todos os tempos. Mas houve uma pausa na nossa alegria: o jogo contra o Uruguai. O Brasil fez um péssimo primeiro tempo e meu irmão gritava que éramos cachorros vira-latas, que o Uruguai já tinha surrado o Brasil em 1950 em pleno Maracanã.

 

Estávamos tristes e sem poder soltar os foguetes, até que, no minuto final do primeiro tempo, o excepcional Tostão deu um passe certeiro para Clodoaldo fuzilar Mazurkiewicz e empatar o jogo. Li, num livro de Zagallo sobre essa copa, que ele deu “uma dura” em todo mundo e que Pelé puxou o brio da moçada. Resultado: Jairzinho desempatou e Rivelino ampliou. Houve dois lances de Pelé que não podem ficar esquecidos. O sensacional drible de corpo no goleiro que deve estar catando cavaco até hoje e a cotovelada no uruguaio que corria emparelhado com ele. Olhamos para o irmão mais velho que disse: “Agora estamos atropelando esses vagabundos”.

 

 

Na escola, os professores não falavam da situação conosco; só que o Brasil estava crescendo e iria tirar todo mundo da miséria. Uma mestra nos disse uma vez que tinha saído um disco muito bom do Chico Buarque com uma música sensacional, Pois é, pra quê. Minha professorinha errou duas vezes, o disco era do MPB-4 e a composição de Sidney Miller. Mas naquela época, tudo que parecia ser protesto era atribuído a Chico Buarque.

 

Quando me tornei secundarista, a porca torceu o rabo. Fui estudar no colégio Objetivo SPG e lá as regras eram rigorosíssimas. Por qualquer motivo, um bedel retirava um aluno de sala de aula, pois a diretoria tinha uma tônica impermeável: não admitia discussões sobre costumes, exigia um comportamento geral.

 

Eu queria namorar minhas colegas lindas, vivia num assanhamento incomum. Nossa música eram baladas do Clube da Esquina (a Tropicália nunca comoveu os jovens goianos como movimento). Nossa vida noturna era na Praça Tamandaré, especialmente no Siriu’s, bar em que tocavam os depois nacionalmente famosos Ricardo Leão, Bororó…

 

 

Resultado: eu e meu novo amigo Marcio Fernandes escrevemos um poema (O dia em que pensei) no qual criticávamos o que para nós era excrescência na escola. Imprimimos em mimeógrafo e distribuímos nas suas duas unidades. Embora fosse apócrifo, devidamente alcaguetados pelos colegas, ao meio-dia estávamos no DOPS reunidos com delegados, diretoria educacional e nossos pais. Acusação: rebeldia. Pena: fomos trocados de sala de aula e proibidos de andar juntos. A segunda parte da reprimenda jamais foi cumprida um dia sequer.

 

Resolvemos ser de esquerda e passamos a frequentar o Comitê Goiano pela Anistia (quando fui secretário de Segurança Pública e Justiça entreguei para o MP o que restara dos arquivos referentes ao pós-64. Encontraram uma ficha minha dizendo que eu era comunista porque integrara esse movimento). Confesso que esse período foi de extremo sofrimento intelectual para mim. Tinha dificuldade de entender a miscelânea do raciocínio e principalmente seus personagens: Kierkegaard era Kiarquejan; Engels foi transformado num mar, o Egeu, e assim prosseguia o tango.

 

Entrei na faculdade em 1979. Havia uma greve e um discurso proferido pelo líder maior dos estudantes, Milão de Freitas, que ficou célebre com o bordão: “Os 15 anos de ditadura”, tão célebre que durante o período todo em que fiquei na faculdade, me deliciava nos anos seguintes com o bardo discursando sobre “Os 15 anos de ditadura” (claro que foi uma piada que fiz com o fraterno amigo Milão, que nos anos seguintes atualizou a faixa etária para 16 anos, 17 anos, 18 anos etc. Mas todo mundo acredita mesmo que ele falou 15 anos por 5 anos. Prova real de que uma mentira repetida várias vezes pode se tornar uma verdade).

 

No Direito queria muito estudar e farrear. Abandonei completamente essa tendência e só voltei a me empolgar com o “Diretas Já” e depois com a eleição de Tancredo Neves. Aí já são outros quinhentos.

Este post foi escrito por: Demóstenes Torres

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4 comentários em "O golpe de 64 e eu"

  • MARCIO FERNANDES disse:

    Querido General, muito obrigado pelo texto primoroso!

  • Maria Leda17063@gmail.com disse:

    Um texto espetacular parabéns Dr Demótenes Torres !,…

  • EDNA CASTRO disse:

    Adorei ler esse texto até me emocionei! Demostene, tive alguns anos de convivência e o prazer de conhecer seus pais e seus irmãos pessoas de caráter.
    Conheci nos anos de 80,pois morávamos no Setor Urias Magalhães em Goiânia. Mudei para Acreúna,mas mesmo assim sigo nas redes sociais e sou fã do seu serviço e também do serviço do serviço do seu irmão Benedito Torres.

  • EDNA CASTRO disse:

    Um texto fabuloso!
    Parabéns Dr Demótenes Torres!

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