sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Os grandes sucessos de uma radiola imaginária nas montanhas congelantes

 

Marcio Fernandes. Alta Via 1, dia 2 — A chuva começou às 18 horas e seguiu seu destino na longa noite ao sopé do Gran Ciampac, uma das mais imponentes montanhas das Dolomitas. Dormi bem até meia-noite, mas veio vontade de fazer xixi e tive de enfrentar a garoa tremendo de frio.

 

Antes, me lembro que acordei de sonho estranho com meu pai. Como a avó Carlota fez uma ponta nos acontecimentos, fiquei bem tranquilo, pois em qualquer sonho que ela participa, seja protagonista seja coadjuvante, é sinal de boas coisas na agenda.

 

Aliás, a agenda hoje começou super positiva. Tivemos a felicidade de conseguir farto café da manhã em refúgio Fodara Vedla, próximo do acampamento, e ainda descolei a permissão pra tomar banho em chuveiro quente com ducha de boca larga. Ainda comprei um sanduíche de queijo por segurança alimentar.

 

Como não há Internet, estamos nos guiando pelos mapas físicos e usando o altímetro para determinar a nossa localização geográfica na travessia da Alta Via 1. Aliás, este é um ponto muito bacana para quem gosta de esporte ao ar livre, pois não conta muito a distância percorrida em quilômetros. O que realmente interessa é a altitude a ser alcançada no sobe ou desce montanha. Ontem foram 600 metros de descida e 460 montanha acima.

Na Europa, a atividade de montanha é a coisa mais natural do mundo. Os pais levam as crianças de três anos para fazer o down hill na garupa das bicicletas. Há toda uma tecnologia cada vez mais avançada de equipamentos que trazem segurança, conforto e praticidade. É um lance de família mesmo no qual até os cachorros são incluídos no hiking de montanha. Não precisava desta parte, né?

 

Ontem, desde o bondoso refúgio até Perderü, foram mais de 500 metros de descida muito acentuada. O sobrepeso da mochila te empurra pra frente e você perde o contato traseiro da bota no solo inclinado.

 

Escorreguei e caí duas vezes. O risco acendeu a luz amarela e ali decidi que na próxima parada iria me livrar de uns três quilos.

 

O Maurizio sentiu o peso excessivo nos joelhos e concordou, sem maiores discussões, que a solução era deixar em Perderü o equipamento de segurança destinado à Via Ferrata. Ou seja, esta parte da Alta Via 1 já estava fora dos planos. Não tem essa de trabalhar ideia fixa. Cada um tem um limite e a contrariedade da regra em montanha é alça de caixão.

 

Pessoal, o frio dentro da barraca úmida é grande. Para trabalhar a conservação de calor eu contraio os músculos e dou uma rangida nos ossos. Altero de tempo em tempo a configuração dos agasalhos e deixo passar na imaginação o desejo de vinho da Espanha, de sopa de cebola e da minha cama quentinha em Pirenópolis.

Para passar o tempo acordado neste abrigo gelado e não deixar aproximar a hipotermia, eu viajo nas boas lembranças. Só memória boa e zero de lamentação. Escrevo, pois escrever me mantem atento aos sinais do corpo em relação à queda da temperatura ambiente.

 

Escuto as músicas que não posso ouvir em vasta seleção de bandas,  embora as faixas dos discos não se completem. Vou pulando de música como se movesse com a mão a agulha da radiola. Nossa, quando era adolescente, eu tive minha própria radiola azul e branca portátil de uma caixa de som e movida à pilha. Era um sucesso. Saudades dela. Não posso garantir se foi mesmo Dick Farney quem gravou, mas veio à lembrança “A noite está tão triste, chove lá fora!”

 

Texto e fotografias Marcio Fernandes

 

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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7 comentários em "Os grandes sucessos de uma radiola imaginária nas montanhas congelantes"

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