sábado, 12 de outubro de 2024

Penso que acho que talvez

 

A amiga Britz Lopes bate o fio — assim escreveria Nelson Rodrigues, herói no meu panteão particular — e, já tarde da noite, me pergunta se o Brasil deu certo. Assim mesmo, de supetão, sem mais nem menos. Exagerou no vinho, penso cá comigo, e vou cuidar de assuntos mais urgentes (chegou a última temporada de “Better Call Saul”, pois não, e é para ontem que a quero assistir). Britz, contudo, insiste no assunto, fazendo também desaparecer minha preocupação com eventuais exorbitâncias etílicas. Como não penso muito sobre o assunto — vamos levando como Deus manda, não? —, sou eu que devo me socorrer, agora sim, com alguma garrafa que tenha sobrado na minha desfalcada adega. Elucubremos.

 

Deu certo? Depende da escola de pensamento, eu diria — e aqui me recordo das antigas explicações, antes de Cristo, em todas as pretensas ciências sociais: os tristes professores afirmavam haver, para cada fato, três escolas, “a tradicional, a moderna e a eclética”, às vezes substituindo “tradicional e moderna” por “ortodoxa e heterodoxa” ou “objetiva e subjetiva”, como que para emprestar algum ar científico ao que era pura empulhação (empulhação ortodoxa, tradicional e objetiva). Nunca mais me esqueci: no susto, apela-se para a “escola eclética”, que é como se pede a ajuda da mãe em discussões teóricas. Pois é: sendo eu de antigas eras e tendo o meu umbigo como centro do mundo, fecho com a escola eclética, mas com alguma propensão ao subjetivismo heterodoxo: penso que acho que talvez.

 

Todos nós conhecemos, claro, aquelas teses de sermos como a Índia e a Bélgica ao mesmo tempo, uma mistura de modernidade e atraso tão nossa como a pamonha de sal acompanhada de café. E isso, para mim, é dar certo: já imaginaram quantas pessoas trabalham para o país não funcionar nos absurdos 5.558 municípios? Aos trancos a coisa vai; além disso, se somos todos assim mesmo, Jekyll e Hyde, por que diabos o país seria diferente? Minha tese é outra, contudo: mesmo tendo dado — mais ou menos — certo, o Brasil vai piorar e se tornar inabitável, destino que independe do governante do momento; nossos guias geniais apenas cumprem a vontade nacional de destruir paisagens urbanas e naturais belíssimas, caiar as montanhas, asfaltar os matos, drenar as nossas muitas águas e pintar de ocre o céu profundo e à luz do qual nos deitamos em berço esplêndido. “Mais ou menos”, eu escrevi ali acima, e retruco com certo odorico-paraguaçuismo: tem hora que é mais, há outras em que é menos, tudo apesar dos entretantos atrapalhando os finalmentes.

 

Releio o que escrevi e percebo que meus pensamentos estão obscuros. Uma comparação poderá me ajudar a ser, se é possível, inteligível. Vejam então: outro dia topei com a página do IPHAN na internet e, fiat lux, o Brasil “se entreabriu para quem de o romper já se esquivava e só de o ter pensado se carpia”. Sim, sim, acompanhem-me que a luz da sapiência vos iluminará. Não é só que sejamos atrasados e modernos simultaneamente (ou o somos na mesma medida do resto do mundo), o fato é que somos modernos, ou capazes de grandes voos, e ainda assim preferimos o voo de galinha manca. Ser atrasado e moderno requer um balanceamento constante, uma fina calibragem que talvez seja umas das riquezas da própria vida; destruir o que de bom realizamos, por um desejo mórbido qualquer que nem mesmo Freud explicaria, é o elo perdido que Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro buscavam (sim, eu exagero: eu e o meu umbigo…). Construímos para destruir; fazemos para desfazer; juntamos para dispersar — todo brasileiro é um Sísifo que rola a pedra da modernidade até o cume da montanha apenas para a ver despencar, sempre e sempre, na ribanceira do atraso e, depois, sobe o morro novamente, com a graça de querer ver de novo não só a pedra morro abaixo mas também o fogo morro abaixo, a avalanche morro abaixo e tudo o mais que possa cair nas profundezas da barranca.

 

Perdi-me. De volta à página do IPHAN, então. Por ora, vamos funcionando mais ou menos, bem e mal, como escrevi e é de praxe — destruímos a nossa história, mas a retratamos bem em alguns livros e também sabemos reconstruir sobrados e mocambos históricos que, obviamente, deveriam ter sido preservados antes de os transformarmos em pó. (Continuo confuso, eu sei, mas já eu me explico.) Há belíssimos livros lá na tal página do nosso Instituto Histórico e muitos podem ser baixados gratuitamente — uma festa para os olhos. Escolho citar alguns sobre Belém, cidade que tornei minha propriedade no Norte que amo, o que bem nos servirá aqui: “Azulejaria em Belém do Pará”, “Igrejas, Palácios e Palacetes de Belém”, “Largos, Coretos e Praças de Belém”, “Arte Nouveau em Belém” e “Círio de Nossa Senhora de Nazaré”. Creiam-me: são realmente de encher os olhos e nos fazer crer num espírito nacional altamente produtivo; são um pequeníssimo recorte de como demos certo — eis a Bélgica da Belíndia (Bélgica e Índia) imaginada pelo economista Edmar Bacha. A Índia (do tempo em que o país não apresentava taxas altíssimas de crescimento, bem entendido), no caso, é a própria Belém, que destoa dos lindos livros: fora algumas reformas pontuais, inclusive no magnífico Theatro da Paz, a cidade está se esfarelando, a fiação elétrica é caótica e prenuncia algum incêndio como o da Quinta da Boa Vista, o esgoto cai nas ruas e o Mercado Ver-o-Peso está sempre cercado de urubus. Santa Maria de Belém do Pará, uma das nossas mais antigas cidades (1616), tem ainda o selo de qualidade de ser um dos locais onde o Padre Antônio Vieira pregou e, sem dúvida, merecia que fôssemos mais Bélgica (mas não se enganem: eu ainda a prezo como minha, se não par droit de naissance, ao menos par droit de conquête). Voamos como condores, mas cortamos as próprias asas logo em seguida.

 

Lênin (opa, opa, opa!) supostamente disse que “Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem”, ou algo que o valha. Eis parte do meu ponto: excluído o ruído do momento e as hipérboles artísticas e da política, há décadas em que nada ocorre aqui no Florão da América, “e assim prosseguimos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado”; outras vezes, de supetão, décadas se passam entre o chope da tarde e o whisky da manhãzinha — vivemos assim, numa gangorra de indefinições arcaicas e definições apressadas. Leio os jornais e não sei se preparo as malas para me mudar para Marte ou se torço contra o Brasil, por causa da ditadura, na próxima Copa de 1970. Ou antes: a Copa do Catar está à porta, mas queremos mesmo é agir no mundo como se estivéssemos na década de 70, vendo o Brasil jogar em Guadalajara e ansiosos pela mesa-redonda que discutirá se Félix está bem no gol. O Brasil é uma mesa-redonda em moto-contínuo, se é que me entendem.

 

Demos e não demos certo, portanto, pois modernos e atrasados somos. E por que, então, o meu alegado subjetivismo para chegar ao busílis, ao âmago, à resposta que a editora espera? Juntemos as pontas deste emaranhado que teci. Ser ao mesmo tempo moderno e atrasado é comum; o que parece nos distinguir, eu insisto, é a preferência pelo atraso e a gana de recuar dos avanços já conquistados, sem contar a constante gritaria de que as metas do gol estão logo ali, salve, salve e ouvirundum, enquanto soamos a corneta para o descaso das armas e para a meia-volta, volver. Curiosamente, os camaradas estropiados que nos cercam creem num futuro idílico, numa rota certa rumo à Estação Felicidade (ou Estação Finlândia?); já eu creio no desastre, em pragas de piolhos e gafanhotos, em águas corrompidas e que o sertão vai virar mar. Duvidam? Pensem comigo: já perdemos umas três gerações num sistema educacional, tanto faz se público ou privado, que recebe os nossos pimpolhos com 6 ou 7 anos de idade e os devolve, ali pelos 18 anos, dançando funk e chamando qualquer estranho de “tio” e “véi”. Pensem mais: não demorará e uma Dhyennyffer, um Maycon Christhyan ou um Enzo Gabriel será o nosso presidente (e desde já me defendo de incompreensões: cito esses nomes porque passaram a ser comuns em todas as classes sociais). Até aqui, então, a gente leva; o problema será viver num eterno puxadinho e ainda ter de aturar a Chrysttyelly, em cadeia nacional e logo depois de ouvirmos o novo Hino Nacional — um funk, talvez algo como “O Bonde do Puxado” —, iniciando um discurso com “Tias, tios e ties”; aí, meus amigos, teremos a resposta do ecletismo com propensão ao subjetivismo heterodoxo: deu certo um tempo e poderia até ter dado certo definitivamente, mas a gente gosta mesmo é de unha encravada que jamais sara. Dito de outro modo: demos certo em muitas coisas, mas faremos com que elas regridam a estágios anteriores de atraso, tanto que Belíndia até ficará como uma boa lembrança, uma Idade de Ouro perdida, quando atingirmos o nosso ideal de Haitíndia.

 

Photo by Rafaela Biazi on Unsplash

 

Post escrito por Marcelo Franco

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Este post foi escrito por: Britz Lopes

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