sexta-feira, 26 de julho de 2024

Quem herdará nosso conteúdo virtual?

 

Quando foi dado a conhecer o testamento de Dna. Venância, Emilio, o sobrinho que por pouco não a desdenhou por toda a vida, tornou-se seu herdeiro universal. Marcos, seu irmão, a quem coube cuidar da velha com devoção por longos anos, recebeu razoável legado, longe do que esperava.

“Que havia feito Emilio para merecer tamanha distinção? Nada; deixara-se amar apenas. D. Venância era a imagem da fortuna.” Eis o resumo e a última frase, diga-se, sensacional e moderninha, do conto “A Herança”, de Machado de Assis.

Mas moderninha só a frase. Vivendo ou morrendo Dna. Venância, hoje, o testamento não seria suficiente para que ela legasse, a quem quer que fosse, seus perfis nas redes sociais. É isso mesmo! Os avatares, perfis pessoais nas redes, até mesmo as contas de e-mail, são alvo de ações judiciais porque não existe, no Brasil, a herança digital. Enquanto cerca de 450 mil mortes colocam na mesa uma realidade muito além da dor da perda, presenciamos situações que, embora pareçam simples, frequentam a mesa pomposa do judiciário.

Mesmo portadores de senhas e logins, com os smartphones nas mãos, familiares não estão conseguindo acesso às contas pessoais de falecidos, mesmo que sejam, inclusive, menores de idade. Recentemente, um juiz de Minas Gerais, não permitiu o acesso da mãe às contas sociais da sua filha falecida, argumentando que a “intimidade das pessoas, inclusive da menor, não poderia ser invadida por mero capricho”.

Muitas decisões também têm entendido que conteúdos de e-mails não podem ser transferidos a herdeiros. As decisões brasileiras estão longe do que decidem tribunais internacionais, que entendem que a “vida virtual” também é patrimônio e que, portanto, como este, deve ter uma destinação hereditária.

Talvez o tema merecesse um acréscimo no currículo de filosofia se tivéssemos tempo, o que não temos agora. A quantidade de “vidas virtuais” que tem o brasileiro, aliado ao desconcertante recente número de mortes, vai levar o tema para o debate legislativo, haja vista os milhares de conteúdos virtuais com valores econômicos que estão ficando sem herdeiros. Isso é ativo, seja científico, literário ou imagético. E ativos têm valor e herdeiros. Resta saber se herdarão ou o ficarão a ver navios.

Eu teria uma sugestão para Dna. Venância enquanto a legislação não chega: deixe por escrito seu legado e nas plataformas que permitirem, afirme o fim que quer dar às suas postagens. É uma forma de perpetuar seu conteúdo, impedindo, inclusive, que as redes cancelem e excluam as contas. Antes ter parentes brigando pela herança do que ver essa herança se dissipando nas nuvens…

Renata Abalém é advogada

  • Texto publicado originalmente na revista SpaceMoney

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Este post foi escrito por: Renata Abalém

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