quarta-feira, 18 de junho de 2025

República das Novelas – a imortal Janete Clair

 

Renata Abalém* – Nos cem anos de nascimento de Janete Clair – completados no dia 25 de abril –, não celebramos apenas uma roteirista de novelas. Celebra-se uma arquiteta de mitos, uma estrategista da emoção popular e, sobretudo, uma mulher que transformou a telenovela em linguagem de exportação, tornando-se uma espécie de embaixadora cultural do país sem jamais deixar seu posto de trabalho no Rio de Janeiro.

 

Janete ocupa um lugar singular na história do Brasil. Ao lado de escritores como Jorge Amado, ela deu voz aos conflitos e aspirações do povo brasileiro. Fez isso de maneira cotidiana, acessível e profundamente estratégica: por meio do folhetim televisivo.

 

Foi através de suas tramas — Selva de Pedra, Pecado Capital, O Astro, Irmãos Coragem — que o Brasil passou a exportar mais do que produtos primários. Começou a vender imagem, sentimento, paisagem humana.

 

Emissoras mexicanas, argentinas e chilenas compraram direitos ou adaptaram novelas de Janete, fazendo de suas histórias uma ponte invisível entre as nações. O que se comercializava ali não era apenas dramaturgia: era um código emocional coletivo.

 

Clair foi, assim, uma pioneira do que hoje se entende como “soft power”. Suas novelas foram recebidas sem resistência, traduzidas sem perda de calor e absorvidas com naturalidade. Seu texto simples e profundo, com personagens de grande complexidade psicológica, ecoava com ressonância entre culturas diversas.

 

A novela brasileira tornou-se, naquele momento, uma forma de embaixada emocional. Seu impacto também se mede por números: em 1972, o último capítulo de Selva de Pedra atingiu inacreditáveis 100% de share, superando índices de transmissões esportivas e sendo considerado um dos maiores recordes da história da televisão brasileira, à frente, inclusive, de finais de Copa do Mundo.

 

Era o povo interrompendo a rotina para assistir a um desfecho ficcional como quem assiste a uma decisão nacional. O Brasil exportava não apenas produto, mas modelo de sociedade, valores, gestos e sotaques.

 

Por que o mundo compra novelas brasileiras? A resposta é simples e complexa: porque nelas se encontra a universalização da emoção. Ao contrário das séries americanas, que operam por gêneros, ou das novelas mexicanas, que tendem ao maniqueísmo, a telenovela brasileira, e especialmente a de Janete Clair, oferece a humanidade com todas as suas contradições. O mundo compra porque reconhece ali a sua própria história.

 

Quem faz novelas? Sociedades que entendem o valor do tempo afetivo. Sociedades que reconhecem o poder da narrativa como instrumento de formação simbólica. E o Brasil é mestre nisso. A novela brasileira não é apenas entretenimento: é um lugar de elaboração coletiva, um espaço de catarse, memória e projeção.

 

É impossível abordar a obra de Janete Clair sem considerar o peso simbólico de personagens como Herculano Quintanilha. Em “O Astro”, Janete cria o tipo que media entre o visível e o invisível, entre o sagrado e o profano. Um homem que encanta multidões, guia destinos e se apresenta como intérprete de mistérios — um sacerdote moderno com turbante e carisma, mistura de guru e empresário. A figura de Herculano se torna, hoje, uma chave de leitura política: num país em que vozes místicas influenciam decisões públicas e onde o palco da fé se mistura ao da política, o personagem renasce como alegoria.

 

No Brasil de hoje assistimos a consolidação de uma frente parlamentar evangélica poderosa, com forte representação de líderes neopentecostais que utilizam a fé como instrumento de influência e capitalização de milhões. Combinam carisma, sensacionalismo e redes de apoio que penetram na política institucional e manipulam a moral cotidiana. A dramaturgia de Janete, ao antecipar esse fenômeno com personagens como Herculano, revela não só sua sensibilidade, mas também sua visão profética.

 

Nesse universo, talvez valha eleger também Carlão, protagonista de Pecado Capital, como figura de estudo. Um homem dividido entre o crime e a honra, entre o impulso e a ética — arquétipo do brasileiro tentado pela lógica da esperteza e do poder fácil. Em tempos em que se discute o crime organizado e sua infiltração nas estruturas públicas, Carlão pode ser relido como o espelho da corrupção que seduz e destrói.

 

A força psicológica dos personagens da “Maga das oito” está na ambiguidade. Nenhum deles é plano. Todos se movem por desejos e dilemas profundos. Suas mulheres amam com fúria e razão. Suas mocinhas, longe de serem frágeis, representam etapas da afirmação feminina. Lutam, sofrem, escolhem, e frequentemente desafiam os destinos que lhes são impostos. São figuras que, mesmo dentro das convenções melodramáticas da época, Janete escreveu mulheres que decidiam. Não se limitava ao arquétipo da heroína passiva: construía personagens femininas que enfrentavam o mundo de frente. E não é por acaso que a própria Janete Clair teve sua trajetória marcada por uma decisão ousada e firme. Quando foi chamada de última hora pela Rede Globo para assumir uma novela em crise — ela mesma tomou a decisão radical de eliminar praticamente todos os personagens em cena e recomeçar a trama do zero.

 

A aposta foi arriscada, mas o resultado foi um sucesso retumbante. Essa passagem não apenas consagrou sua habilidade técnica como revelou sua coragem literária: Janete reescreveu o destino de uma história e, com isso, consolidou o seu próprio. Hoje, quando o Brasil vive tempos de disputas de narrativas, a obra de Janete reaparece como território de coesão simbólica. Suas novelas funcionavam como rituais cotidianos, e seus capítulos, como missas laicas onde o país se via e se pensava. A televisão, sob sua pena, tornava-se espelho e oráculo. E por meio dela, o Brasil dialogava com o mundo — com ternura, conflito e mito.

 

No centenário de Janete Clair, percebemos que o desimportante são os cem anos, até porque Janete é imortal! Viva Janete Clair!

 

*Renata Abalém, Cadeira nº 18 da Academia Líbano-Brasileira de Letras, Artes e Ciências

Este post foi escrito por: Renata Abalém

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