quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Seja egoísta e se dê bem

 

Estou aqui no gramado da Casa do Sol, sentado debaixo de uma árvore, cujo nome não sei, sob as sombras pequenas de crianças, cujos nomes, apelidos e manias sei de cór, uma a uma. Elas vêm correndo me dar um beijo, ou pedir um beijo no dodói, ou querer mexer no meu notebook, ou puxar meu bigode, ou apenas ver se eu continuo aqui junto delas.

 

Hoje é domingo, dia em que os pais dos órfãos da Casa do Sol visitam seus filhos. Sim, os pais dos órfãos. Como a imensa maioria das crianças carentes e em situação de risco no Brasil, as crianças da Casa do Sol também têm pai, mãe, parentes, mas são órfãs na vida. Órfãs de respeito, de dignidade, de cidadania, de atenção, de oportunidades. São órfãs de todos nós.

 

Casa do Sol nasceu sem querer, meio que por acaso. Ela surgiu em 1994, resultado de uma convergência espontânea de sentimentos, vocações e sensação de culpa. A motivação foi mais emocional do que de consciência propriamente dita. Minha família e alguns amigos tínhamos compaixão e indignação com a injustiça social ao nosso redor. Tínhamos também dinheiro, tempo, saúde e energia disponíveis. Daí em diante, coincidências foram surgindo. Quando nos demos conta, a Casa do Sol já abrigava, em regime de internato integral, mais de 20 crianças carentes da região de Cotia, município da Grande São Paulo. Hoje aqui vivem 25 crianças, nossa lotação máxima pela legislação. Ao longo desses anos, já tivemos o privilégio de conviver, interferir no presente e sonhar com o futuro de  quase 300 crianças.

 

Até pela falta de instituições que aceitem recém-nascidos aqui por perto, fomos nos especializando em receber crianças saídas da maternidade, os bem miudinhos, de um dia a 6 anos de idade. Eles chegam até nós através da 3ª Vara Judicial da Infância e Juventude, do Fórum de Cotia. Cada história é uma história, mas é a mesma: abandono, negligência, maus tratos, abusos de todo tipo.

 

As crianças ficam conosco enquanto dura o processo judicial, que dá rumo à vidinha delas: reintegração à família ou adoção. Enquanto isso, nós as tratamos como tratamos nossos filhos – na base do carinho, do colo, do dengo e da autoridade firme. Elas aprendem a conviver, a respeitar, a partilhar, a serem amadas e a amar.

 

Fazemos o maior esforço pra balancear o amor caseiro, que sabemos ser temporário, com os fundamentos e as bases de uma educação pro resto da vida. Tentamos desenvolver a autoestima, ensiná-las a sonhar e a correr atrás dos sonhos com suas próprias pernas. Tomamos muito cuidado pra não cair na tentação do assistencialismo piegas, de curto prazo, socorrista. Queremos que nossas crianças tenham, sim, qualidade emocional de vida já, mas que se preparem pra buscar e lutar por essa qualidade no resto de suas vidas.

 

Além das dessas crianças que abrigamos, temos um consultório médico-odontológico, que cuida de mais de 380 crianças carentes da região, todas cadastradas e atendidas com hora marcada, direitinho. Mas não atendemos de graça, todos têm que contribuir com alguma coisa: verduras, legumes, ovos, panos de prato com bordas de crochê, serviços voluntários. Todos pagam com orgulho, com algo que é deles, que os valoriza, que respeita sua dignidade individual, que não os submete à condição de carentes recebendo uma esmola, um favor, assistencialismo paternalista.

 

Mas as crianças não são tudo. Eu vejo, aqui no gramado, suas mães e seus pais felizes e aliviados por encontrarem os filhos crescendo fortes, com boa cabeça, protegidos e em segurança, sem grandes traumas a curto prazo. Alguns pais se mostram arrependidos, outros começam a adquirir consciência, juram que estão se empenhando pra se aprumar na vida e merecer os filhos de volta. Claro, há os pais indiferentes a tudo, mas até esses parecem felizes, pelo menos nesses episódicos momentos com os filhos, aqui no quintal da Casa do Sol, algo que nunca puderam ter.

 

De repente, o Roberto aparece, entristecido com a ida do Robinho pra Espanha.  O Roberto cuida da limpeza pesada, do quintal, dos pequenos consertos, ajuda na horta, abre e fecha o portão, dá mamadeira quando precisa, cobre a falta de alguém na lavanderia, gosta de dar comida na boca dos menores, faz tudo. Faz tudo com prazer, com alegria.

 

Antes de vir pra Casa do Sol, o Roberto estava sem emprego nem rumo fixo, desacorçoado e sem perspectiva na vida, solteiro, morando de favor. Hoje, ele tem registro em carteira, uma profissão, um salário digno e merecido, um endereço, um bando de amiguinhos que o chamam de tio. E tem muito orgulho, não do emprego, mas do trabalho que faz.

 

Como o Roberto, na Casa do Sol tem a Andrezza, o Jaime, a Maria, a Xuxa, a Dodô… Ninguém quer sair daqui por nada deste mundo. Todos cresceram como pessoas, tornaram-se cidadãos. Vendo esses grandões, brincando no meio das crianças de um jeito que não se sabe quem é mais criança, eu me alegro por estarmos contribuindo pra qualidade de vida desse povo também.

 

Mas minha família e eu somos os verdadeiros e grandes beneficiados pela Casa do Sol. Ela e as crianças nos fazem um bem imenso, nos dão um misto de paz com orgulho discreto; de calma com sensação de dever cumprido; de emoção com  certeza de estarmos sendo úteis. Começamos movidos pela emoção e senso de justiça, como uma forma de retribuir à vida todos os privilégios que temos. Mantivemos a compaixão e a paixão, mas passamos a profissionalizar a generosidade, adquirimos consciência, demos forma à responsabilidade, conteúdo e estrutura à solidariedade.

 

Recomendo algo semelhante a todos, nem que seja por interesse próprio ou egoísmo: participar faz bem pra gente.

 

Foto: Giovanna Karla

Este post foi escrito por: Percival Caropreso

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