Señora Alícia? Alícia González?
Rimene Amaral – Alícia González, eu supus, era esta senhora da foto, embalada em sono REM – considerada a fase mais profunda do sono -, debruçada em uma mala e sendo o escoro da própria filha, que também supus ser. Foi a primeira foto que fiz naquele dia, em outubro de 2011, no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Numa dessas idas e vindas com amigos cafonas – chamávamos de Cafonada, com C maiúsculo -, à espera do voo que nos levaria para cinco dias em Buenos Aires. Enquanto aguardávamos, a cerveja era a companheira fiel e individual de cada um dos participantes da excursão cafona. Ah, um dos casais foi barrado no aeroporto porque se apresentou para o embarque apenas com a carteira de motorista. “Uai, Carteira de Habilitação é identidade”, resmungava ela na fila do check-in, ainda no aeroporto de Goiânia, à época chamado de aeroviária. Mas a Argentina não é o Brasil. Eles só conseguiram sair de Goiânia num voo no fim da tarde. Depois de correrem num posto de atendimento de serviços do governo e conseguirem fazer o documento em regime de urgência.
Sobre a saga de Alícia, só souberam de ouvir a história.
A cerveja descia. A refrescância tomava o corpo e o álcool subia e ia direto para a cabeça. E foi o álcool que me despertou para um chamado constante na central de rádio do aeroporto. Duas passageiras eram chamadas para embarque imediato para Punta Cana, em três línguas diferentes: português, espanhol e inglês. Mas aquelas duas, incluindo Alícia González, eu supunha, não estavam ali. Até poderia ser ela, mas estava em outro plano.
Comentei com os demais à mesa e todos ficaram curiosos para saber se era, de fato, Alícia González, a mulher que, exaustivamente, era chamada no serviço de som, mergulhada naquele sono profundo. Ficaram todos na expectativa. E eu resolvi que deveria fazer alguma coisa. Depois de fotografar a cena, é claro, comecei a dar voltas em torno das duas – mãe e filha – eu supunha! – chamando, em tom mais alto, o nome de Alícia González. Podia ver a Cafonada se dobrando do rir com a cena, enquanto eu, sério, tentava cumprir a empreitada. Cheguei a me sentar no banco ao lado e gritar: “Señora Alícia. Alícia González?”. Chamava num espanhol perfeito. Nada! Pensei em chamar os bombeiros, primeiros socorros ou algo assim. Depois imaginei que deveria correr até o balcão da empresa e informar que, enfim, eu havia encontrado Alícia González e sua filha – eu supunha -, dormindo no banco. Alguém haveria de acordá-las com veemência. Um funcionário saiu correndo para o local e eu ouvi o meu nome ser chamado no mesmo serviço de rádio para embarcar. Apertei o passo. Era a minha vez. A nossa vez. A vez da Cafonada.
Até hoje não tive a certeza se aquela mulher era mesmo Alícia González, a anunciada. O fato é que a senhora mergulhada nos braços de Morfeu, virou lenda. Alícia González é muito mais que apenas um nome. É um evento protagonizado pelos membros de uma Cafonada. Quando estava sentado no banco ao lado, ela ainda continuava na mesma posição – acabei passando perto e pensei: “Ela vai ter câimbras e dor na cervical”, e saquei meu bilhete, me apresentei no portão 6 e embarquei imediatamente.
Me lembro que Danielle, uma das amigas-companheiras de viagem e cafona, olhava indignada para o tempo, pensando na situação, sabendo que jamais saberia a verdade sobre uma das personagens mais marcantes, intrigantes, enigmáticas e emblemáticas dentre as viagens que já fizemos em turma. Acho que chegamos a pensar em montar uma outra excursão, com a Cafonada, com destino à República Dominicana, e sair pelas ruas na região de Punta Cana gritando, assim como o sistema de som do aeroporto, por Alícia Gonzáles, com um copo grande de Mamajuana.
Chegaríamos numa quarta-feira, por volta de 4 da tarde. Assim que pousássemos no aeroporto, todas as nossas atenções estariam voltadas a encontrar Alícia González. Iríamos direto à polícia local, ainda no aeroporto, para saber se ela havia conseguido chegar em casa e quando.
Haveria de ter alguma pista sobre a dorminhoca, eu supunha! Pela data, poderia ser possível saber mais sobre ela. Desbravaríamos a cidade com a foto na mão, mostrando-a a todos que encontrássemos nas ruas. Alguém haveria de reconhecer. E quando a encontrássemos, contaríamos tudo que havia acontecido e lhe mostraríamos as fotos. Havia outras. Com cara de interrogação, Alícia González arregalaria os olhos e diria assustada: “Yo no soy esta mujer”. E insistiríamos: “Mas você é Alícia González!”. E ela explicaria que sim, que se lembraria do dia, da chamada do voo, da correria e lembraria que não havia perdido o avião.
Se aquela na nossa frente em Punta Cana seria, de fato, Alícia González, quem era a mulher da foto?
Será que alguém neste mundo, ainda dorme assim?