domingo, 8 de dezembro de 2024

Sob as bênçãos de Leonardo

A saga de um casamento no interior  —  Adelaide e Gaudêncio se conheceram em um site de relacionamento e durante três meses namoraram pela webcam. Ela, moça do interior de Goiás, residente na capital, descolada, de família conservadora, mas cabeça aberta. Ele, paulista, filho único, criado a pão-de-ló pela mãe e pela avó, médico, cabelos cuidadosamente penteados – só usa calça com quinas. Em comum eles têm o amor pela vida e o que nasceu das fotos das redes sociais, conversas íntimas e madrugadas de solidão. Marcaram de se encontrar várias vezes lá ou cá, mas nunca deu certo. Agora, ele veio para casar. E tudo acontecerá com uma grande festa.

 

As comemorações do casamento vão começar na quinta-feira, assim que o avião do noivo pousar no aeroporto de Goiânia. Toda a turma – amigos, parentes e agregados – estarão à espera do rapaz com faixas, balões, apitos e lembrancinhas regionais. Os homens, todos!, usando óculos Prada e as mulheres, todas!, com bolsas Michael Kors. Um garçom circulará pelo saguão do aeroporto servindo pamonha frita, carne de lata e pastelzinho de pequi. Um breve esquenta do que será o cardápio da festa. No sistema de som local, claro, Leonardo, o embaixador de Goiás, vai cantar os sucessos de toda a carreira, inclusive quando ainda havia Leandro. Os padrinhos vão aguardar o noivo na porta da sala de desembarque com uma palma branca em sinal de paz e amor.

 

Depois da euforia, sairão carregando o noivo nos ombros e gritando: “Com quem será… com quem será…”. No estacionamento, ele receberá uma camiseta com uma foto de todos os amigos, assinada por cada um, com a frase: “Seja bem-vindo para sempre no Goiás!”. Ele entra numa caminhonete gigante, cuja carroceria é usada única e exclusivamente para as caixas de som do potente Pioneer, que tocará, durante todo o trajeto, repertórios de todas as centenas de milhares de duplas sertanejas goianas. Serão 220 quilômetros até Iporá, a cidade dos pais da noiva. Os carros que seguirão a caminhonete estarão todos conectados entre si e tocarão a mesma música. O veículo que encerra o comboio será um trator, com uma carrocinha acoplada, levando barris de chope e um carregamento exclusivo de copos de plástico de 300 mililitros. Nem pense em Epocler, Engov e coisas do tipo. Goiano não precisa desses subterfúgios.

 

Nas aproximadas três horas – que devem se tornar umas seis – até a cidade do casório, a viagem deve ser divertida. Ninguém pode ficar calado mais que o tempo de engolir o chope. Apenas! Cada boteco de estrada, posto de gasolina, uma parada obrigatória de 15 minutos. O noivo descerá da caminhonete, o volume da música será reduzido e ele fará um pequeno discurso. Sempre com um dos amigos-padrinhos ao lado, com uma dose de Ypióca na mão. Terminou o discurso, vira a dose. E segue o cortejo.

 

Na chegada à cidade, faixas espalhadas – duas em cada quarteirão – deixarão claro ao noivo a paixão da noiva, da família da noiva e a sacanagem dos amigos da noiva. Frases criativas tomarão a cidade, do tipo: “O ideal no casamento é que a mulher seja cega e o homem surdo”. Ou “O casamento é a única virtude ao alcance dos covardes”. E ainda: “Lutar pelo amor é bom, mas alcançá-lo sem luta é melhor”. Na chegada à casa dos pais da nubente, uma banda esperará o comboio e tocará o arrocha assim que o noivo descer da caminhonete, já cambaleando, numa clara evidência que já queimou a largada, mas ainda permanece de pé depois de todas as paradas. Será recebido pela família da noiva – pai e mãe – que tentará, em vão, falar do orgulho que será tê-lo como um filho no seio familiar. O discurso da mãe será abortado, antes mesmo da primeira frase ser bradada, pela euforia etílica dos amigos, parentes e agregados que fazem parte do comboio.

 

Entrando em casa, as portas estarão decoradas com festões coloridos e brilhantes, ainda que faltem meses para a chegada de Papai Noel. Lá dentro o som vibra e faz tremer tudo que não esteja fincado ao chão com alicerce firme, tocando o que? Leonardo, claro! Até quando ainda havia Leandro. O cunhado, repentinamente, surgirá na sala, vindo do quintal com os pés descalços e sujos pela terra ainda úmida que fica debaixo da mangueira, cantando desafinadamente mais alto que o som, com os braços abertos e estendidos ao noivo, um copo de alumínio cheio de cerveja numa mão e a garrafa na outra. Ele também estará com a camiseta da tchurma “Seja bem-vindo pra sempre no Goiás”, mas com um X em cima do nome do Estado, substituído, em pincel atômico vermelho, por “Iporá”.

 

Todos se ‘apronchegam’. Cada qual com seu copo vai entrando e já pegando um dos pratos, que estarão postos em forma de torre colorida em cima da mesa da cozinha e rumando, esfomeadamente, para o quintal, onde dois cavaletes de pintor e uma tábua larga por cima fazem as vezes de outra mesa e sustenta as panelas com a comida do almoço. O cardápio: arroz branco, arroz à grega, feijão de caldo, feijão tropeiro, carne de lata, almôndegas, uma bacia enorme de macarrão número 5 com molho de extrato de tomate Elefante, maionese de batata e ovo e tomate picado com óleo de soja e cebola de folha rasgada na unha. No final do banquete, uma mesinha menor com um Duralex marrom, servirá a sobremesa: arroz doce com pau de canela.

 

A bebedeira, a comilança e a música seguirão com a mesma intensidade até o domingo, quando, enfim, o noivo cairá pelas tabelas bêbado e, com princípio de coma alcoólico, será levado ao hospital municipal para tomar glicose na veia, aplicada por uma enfermeira prática. Todo o comboio que o acompanhou desde a aeroviária até Iporá seguirá junto. Desta vez, com a noiva, não menos embriagada e com um copo de sal de fruta na mão, tentando aliviar a azia causada pela mistura bombástica, nem um pouco leve, do cardápio de quatro dias de festa e muita cachaça. Quando chegar a segunda-feira, ele, o noivo, dormindo no quarto cedido pelo cunhado, abrirá os olhos. Vai mirar um ponto no telhado da casa e dizer baixinho, com um sotaque digno de goiano genuíno: “Divino Padeterno! Nossinhora, meu Deus! Ah, nem…”. Dará um suspiro, virará para o canto e deixará para pensar na vida depois que a ressaca passar.

 

Ilustração: colagem digital João Colagem

Rimene Amaral é jornalista, radialista e fotógrafo

Este post foi escrito por: Rimene Amaral

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