domingo, 8 de dezembro de 2024

Subversão simulada no Bar do Serapião

 

Marcio Fernandes – Eu nasci um ano e alguma coisa antes do 31 de Março de 1964, então não posso ser rotulado Filho da Ditadura. Minha situação era considerada boa até que os militares depuseram o João Goulart, Jango, por quem cultivei admiração simpática desde criança, embora hoje reconheça que ele estava mais para fritar bolinhos.

 

Ainda nas fraldas, fui levado para o jardim da infância do Golpe Militar em razão de meu avô ter integrado a primeira fila dos prisioneiros políticos do regime, ainda em 1964. Ele era alfaiate, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e amigo do Luiz Carlos Prestes. Um marxista-stalinista que não fazia mal a ninguém; imaginava. Foram 43 dias de prisão no quartel do Exército em Goiânia, na época 10º BC, onde depois houve porões de tortura que levaram à morte e ao desaparecimento de civis.

 

A maioria de nós era atéia, mas de vez em quando rolava aquele clima de sexta-feira da paixão em casa, pois não se prende imotivadamente um homem honrado. Por outro lado, a conversa dos adultos no almoço de domingo sempre envolvia estratégias para derrubar o regime militar que nunca se materializaram.

 

Meu pai não se cansava de lamentar que se o Jango tivesse entregado o Ministério da Justiça ao Leonel Brizola, o golpe teria sido repelido. E meu avô chorava. Era o choro de um homem diminuído pela dimensão da cela e completamente falido, além de alguma coisa embriagado. Ninguém mais quis fazer terno na alfaiataria de um ex-preso político e ele foi rapidamente à bancarrota.

 

O regime militar só se fortalecia com a sucessão dos generais, especialmente pelos resultados extraordinários de crescimento econômico e da edição do AI-5. No nosso carro não se pregava o adesivo “Brasil: Ame-o ou deixo-o”. A gente também não entrava na onda do “Eu te amo meu Brasil”, mas estava feliz com a prosperidade do Milagre Brasileiro.

 

Meu pai era marxista como meu avô e começou a ganhar grana como dentista. Ué, para nós deixar o Brasil, como foi sugerido pelo regime, era sair de Goiás para explorar o litoral do País. Na longa viagem de até 2 mil quilômetros, toda vez que um dos três filhos perguntava se estava chegando na praia, meu pai acionava um botão mágico no painel do carro e a gente começava a voar.

 

Muitas vezes, aterrissamos no Pinguim, bar de Ribeirão Preto, onde havia um filé com alho só para mim. Depois que eu comecei a entender o mal orgânico que o franquismo operou na consciência da sociedade espanhola, tirei as mágoas que carregava no fígado e as guardei no freezer, como me ensinou um amigo. É uma bobagem manter conexão com o sofrimento se você pode voar.

 

Foi numa dessas viagens que eu ganhei a primeira calça Lee. Em seguida, entrei para o segundo grau, deixei o cabelo crescer, nunca mais viajei com eles e comecei a me dedicar à revolta revolucionária usando camiseta Hang Ten. De acordo com o politicamente correto da época, você não podia reconhecer os avanços de infraestrutura do regime militar, mas era alguma coisa de outro mundo a Ponte Rio-Niterói que a gente acompanhou a construção nas duas idas ao Rio de Janeiro.

 

Eu entrei na universidade aos 16 anos, em 1979. Antes, frequentava o Comitê Goiano de Anistia, ali no Edifício do Cine Capri, comandado pelo Pedro Wilson, ex-prefeito de Goiânia, de uma paciência inexplicável com aquela gritaria. Fui ao aeroporto esperar a chegada dos exilados. Depois, alguns deles se mostraram super desqualificados e malandros. O que para mim importava era Leonel Brizola, que liderava a abertura política com as ideias dos melhores intelectuais da época, especialmente do antropólogo Darcy Ribeiro e do jornalista Samuel Wainer.

 

 

No movimento estudantil, três tendências atuavam na universidade. O PCB, o PC do B e a Libelu. Não havia PT. Eu pertencia à primeira, mas achava mais interessante o pessoal anarquista da Libelu. Assim que todos os presos foram libertados, a pauta política no último governo militar foram as eleições diretas para presidente, uma vez que houve eleições livres para governador, senador e deputado em 1982.

 

Já a UNE, dominada pelo PC do B, era de uma inominada hipocrisia ideológica. Lutava pelas Diretas Já para presidente, mas instituiu a eleição indireta para a escolha dos seus dirigentes dois anos após a recriação da entidade no congresso antológico de radicalismo realizado em 1979, em Salvador. Acho que é assim até hoje.

 

Ali eu desacorçoei do pessoal, abandonei o comunismo, fui tratar de estudar história e arqueologia, e ainda me revoltava com a galera promover quebra-quebra no Restaurante Universitário. Era só o único lugar em que havia comida boa, quase gratuita, subsidiada pela ditadura. Espetáculo de bandejão no quantitativo. Continuei brizolista e fui com ele até o primeiro turno das eleições de 1989. Desde então, iniciei uma longa jornada de votar nulo segundo turno. Não caí na onda do Brizula contra o Collor.

 

O Movimento Estudantil era um fuá danado, com muita atividade revolucionária aparente e pouca difusão de conhecimento, à exceção do Cineclube Antônio das Mortes no DCE da UFG. E ainda tinha a mania de perseguição de parte do pessoal, muito bem retratada pelos personagens Ubaldo, O Paranóico, do Henfil, e o Washington, do Chico Anysio.

 

Me lembro de um camarada grego que todo sábado ia ao DCE com a situação definida de que seria deportado na segunda-feira. Dizia que estava sendo monitorado pela Polícia Federal. Alguém emendava: “Eu também acho que estou sendo vigiado”. Cascata total. Ato contínuo, o pessoal caía no forró até virar um mulambo da meia-noite para o dia com as figuras que tinham a aparência da Estagiária do Calcanhar Sujo, de Nelson Rodrigues em vestido indiano e perfume patchouli.

 

Depois da Anistia, uns aloprados do regime militar realizaram uma série de atentados terroristas à bomba que culminaram no Caso Rio Centro. Foi uma patacoada promovida por um major e um sargento do Exército no Dia do Trabalhador, em 1981, durante mega show de MPB. Nunca foi apurado o que estava por trás daquilo.

 

Havia censura, mas nem de longe depois de 1979 houve repressão sangrenta das forças do Estado, como muita gente narra mentirosamente. Na verdade, na época, o serviço pesado da Polícia Federal era prender quem fumava maconha. Os caras não tinham mais utilidade de polícia política. Do outro lado, a coisa tinha muito de fantasia revolucionária de boteco, de onde o pessoal não saia em vez de estudar.

 

A gente também ia aos bares do Setor Universitário, da Praça Tamandaré, mas éramos estudantes aplicados. Nós tínhamos nossa própria célula revolucionária ultra-secreta no Bar do Serapião. O proprietário era um homem alto e corpulento, que lembrava o Marighela pelo nariz adunco e as clavículas expandidas.

 

Com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos sobre o balcão, Seu Serapião ouvia calado nossas atividades subversivas brancaleones lideradas pelo Mauro Brom, que pegou em armas, ficou um tempão preso e não saiu na primeira anistia; Demóstenes Torres, Hélio Belloni Filho e algum outro Zé Ruela que aparecia por lá.

 

Um dia houve confronto da Tropa de Choque da PM com uma passeata que visava impedir o trânsito sobre a Ponte da Rua 10. Era pura porralouquice do PC do B. A PM desceu o cacetete no pessoal com cavalaria e tudo. Uma violência gratuita. A gente estava meio apurado. A conversa era tensa. Um dos caras já queria montar um grupo foquista para derrubar o presidente Figueiredo, que ele chamava de Batista, em referência ao Fulgêncio de Cuba deposto por Fidel.

 

Aí Seu Serapião, que nunca dizia nada, entrou no assunto com aquela voz de capiau e indagou porque cada um de nós não pegou meio saco de pedra para enfrentar a PM. A princípio não reconheci a covardia revolucionária. Uai, fiquei super cismado sobre como seria meio saco de pedra na mensuração sábia do Seu Serapião.

 

Seria grande, médio ou pequeno? De tecido, talvez. Mais para marrom ou verde escuro. Azul, jamais. Aquela indeterminação material do meio saco de pedra mudou minha vida. Por desonra do meu papel pusilânime na libertação da América Latina, naquele momento dei por encerrada minha atividade subversiva simulada, parei de ouvir a Mercedes Sosa e tempos depois me casei com uma prima da Libelu.

 

Marcio Fernandes é jornalista

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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3 comentários em "Subversão simulada no Bar do Serapião"

  • Américo Vasconcelos disse:

    Até tu era marxista, ó Márcio? Naquela época se você estudasse na a área de humanas, era esse o seu destino. Meu pai também sempre foi simpatizante da esquerda. Mas era quieto. Ficava só nas leituras de livros. Nunca o vi lendo aqueles tablóides famosos da época. Tampouco participando de manifestações

    Eu pessoalmente nunca curti política. O ambiente na Engenharia também era menos ruidoso do que nas Humanas.

    Ótimo texto. Parabéns

  • Maria Leda17063@gmail.com disse:

    Maravilhoso texto parabéns Dr Márcio Fernandes!

  • Marco Dornelas disse:

    Que memória, heim, Marcio?… Cine Capri e tudo… Fomos quase todos revolucionarios de esquerda na juventude. Alguns vêem rapidamente que esse “idealismo” não passa de narcisismo guevarista e que, no final, o comunismo é uma hecatombe social. Mas a vida são sonhos e temos o direito e o dever de viver de ilusões por algum tempo.

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