Tentando abrir porta alheia em Madri
Depois do episódio sem a saia nas ruas de Barcelona, peguei um trem para Madri. O endereço era um lindo flat no bairro de Chueca, onde pulsa o jeito livre de viver dos gays descolados, com lojas de design alternativo, ateliês e estúdios de arte, showroom de óculos tresloucados e o delicioso Mercado de San Antón, com o seu terceiro andar apinhado de bares para copas de vinho e tapas em profusão de variedade. Para a noite, é preciso fazer reserva, pois metade das bichas maravilhosas se aboleta por lá depois das seis da tarde. Lugar melhor, não poderia ter escolhido.
Marquei minha chegada com o anfitrião do Airbnb às 16 horas de uma segunda-feira. E, embora ele tivesse estabelecido punições aos hóspedes em caso de atraso prolongado, nada disse sobre incidência de desconto, ou coisa que o valha, se a situação fosse inversa. E foi o que aconteceu. Cinco da tarde e nada dele aparecer com a chave. Então, fui a um café charmoso ao lado do prédio, onde havia na entrada uma bicicleta vintage com lavandas na cestinha, e pedi para usar a internet, já que não tinha sim card. Consegui o contato e depois de duas horas de atraso o anfitrião chegou. Cliquei aceito em todas as desculpas e assumi o apê.
Excitada eu estava. O lugar era muito bacana. Tudo automatizado, cama cheirando hotel cinco estrelas, TV grande para ver deitada, banheiro impecável. Mais que ideal para a solitária viajante. E o Mercado de San Antón estava ali, uma quadra adiante. Juan, o anfitrião, explicou as regras do pedaço e reforçou a de número dez, que dizia respeito ao lixo: “Deve ser deixado às sete da noite no galão coletor, na calçada de frente ao prédio, cerca de cinco metros à esquerda”. Tamanha precisão, desrespeito jamais!
Na terça explorei à exaustão o festivo bairro, arrumei amizades no Café Arco-Íris e fui me recolher mais cedo, morta. No dia seguinte fiz o café da manhã, bati longo papo comigo mesma para a elaboração de um roteiro e fechei a programação: exposição sobre o Homem Vitruviano de Da Vinci, tapas no Mercado de San Miguel, centro de Madri, e à noite um belo cordeiro num dos restaurantes de San Antón. Marquei esse último “apuntamento” para as oito da noite porque a concorrência é grande. Liguei e fiz reserva.
Quarta. Cumpri bonitinha a agenda. Até me elogiei porque costumo me sabotar às vezes por me distrair com outra coisa no caminho. Tinha de voltar para o apê antes das sete, organizar o lixo, me arrumar e ir para o abraço com o cordeiro. Assim o fiz. Desci com o lixo às 18h55. Só levei a chave. E até 19h15 nada! Uns 50 metros, na mesma calçada, havia um container de um restaurante. Fui depositar a “basura” lá para apressar a operação.
Na volta, a chave não abria portaria. Tentei várias vezes. Ninguém chegava ou saía para eu poder explicar a situação e estava sem celular para chamar o anfitrião e morrer nuns 50 euros pelo incômodo ou dano da chave, o que não houve. O frio começou a apertar, meu horário no restaurante se aproximava e nada. A chuva fina e incômoda já indicava que a noite seria uma roubada. Me sentei para pensar e resolvi olhar para o outro lado. Notei que a bicicleta do café estava mais longe da entrada. Daí, descobri que os prédios eram gêmeos e eu estava tentando abrir o irmão do meu.
Já batendo queixo, alcancei o edifício certo, mas acabei perdendo o horário do jantar. Tudo isso porque a observadora aqui só começava a andança pelo lado direito e não havia percebido a sósia da construção clássica à esquerda. Viagem sozinha é assim: gastamos muita energia com marcação de vôos, bilhete de trem, chegada a cidades grandes, mas não nos atentamos aos detalhes, que fazem toda a diferença. A partir de então, passei a fotografar a fachada de onde estou hospedada. Ah, comi o cordeiro no outro dia.
Na foto, o terraço do mercado de San Antón: delícia de lugar