sábado, 4 de outubro de 2025

Tomei um caldo tão grande do Rio Lima e quase fui parar no repouso dos fantasmas afogados

 

Marcio Fernandes – Hoje acordei com entusiasmo pleno para fazer a última trilha em Ponte Barca (Portugal). Atravessei a ponte medieval e fui em busca da ecovia do Rio Vez. Após dois quilômetros da foz do manancial, segui margeando o Rio Lima até que fui convencido por um pescador de que não havia ponte atravessá-lo naquela direção.

 

Por só andar para frente, decidi cruzar as águas do rio que pareciam plácidas. Aparentemente, o leito era raso, mas ao entrar percebi que tinha caído em uma roubada que quase me levou para o repouso eterno onde moram fantasmas afogados.

 

Na verdade, o Lima tem correntezas ocultas e uma profundidade expressiva. Foi o maior caldo que eu tomei nestes 62 anos de desportista aquático de extraordinário êxito longe da água. Eu nado muito bem, no entanto tive de usar um único braço para romper a violência das águas para não molhar o telefone celular.

 

 

Toda estratégia planejada de amarrarar os cadarços das duas botas e pendurá-las no pescoço foi um fiasco. Elas se encheram de água e no interior do calçado foi formada uma piscina na qual o celular nadava em segurança. Isso só prejudicou a minha progressão rio adentro. A mochila de ataque também criou uma reversão de empuxo e imaginei que não iria conseguir chegar à margem oposta.

 

Meu Deus, o coração, que já não é essas coisas, parecia sair pela boca. Quando, finalmente, alcancei o outro lado do rio, percebi que o bosque estava completamente embassado e fora de foco. Foi quando veio a constatação de havia perdido meus óculos preferidos.

 

Sobrevi, mas na conta prejuízo tive de contabilizar um power bank, que a Sofia Jerônimo me presenteou na Geórgia, além de duas garrafas de águas muito práticas e tratadas como ente familiar. Ofegante e com a visão prejudicada só queria sair logo do rio e tive os pés dilacerados por capins cortantes e plantas rasteiras repletas de espinhos.

 

 

Super roubada. Ao chegar em casa e recuperar a visão pude medir a extensão do estrago. Parecia que eu havia jogado futebol contra onze gatos argentinos. Mente quem diz que o Merthiolate não dói? Tudo o que eu queria agora era uma pomada Minancora que minha bondosa avó Carlota aplicava em meus machucados na infância. Eu quero mandar um grande abraço para a Dra. Juliana e para o Dr. Eduardo, meus cardiologistas. Me lembrei de vocês na hora do apuro grande.

 

Antes de atravessar o Rio Lima, eu havia imaginado que um dia eu quero virar musgo para viver eternamente em lugar extremamente úmido e não ter mais de sair em caminhadas de longo curso feito um tonto romântico por natureza.

 

Os musgos estão por todas as partes da floresta cililar do rio e em imensos blocos de granito arredondados e assentados no leito do Lima. Eles devem ter sido levados para lá em duas hipóteses: erosão provocada pela última deglaciação ou consequência de movimentos tectônicos. Uma vez que não sou geólogo, posso estar completamente enganado.

 

 

No ambiente da trilha é muito interessante perceber a mudança da estação do ano. No solo, as flores ainda estão latentes e multicoloridas com amarelo, roxo e branco, como deve se comportar o verão que as recebeu da primavera. O outono vai começar no domingo e os plátanos, prontamente, começam a perder o verde das folhas que caem em coloração quase vermelha.

 

Na minha terra não tem nada disso e vou embora de Ponte da Barca morrendo de saudade destes dez dias de pura imersão nas boas coisas do Alto Minho: o Rio Lima, o bife com arroz, batata frita em rodela e ovo de gema mole por cima, o doce de coco revestido de hóstia e o vinho.

 

 

Hoje na trilha, meia hora antes de tomar o mencionado caldo, encontrei um casal de israelenses. Conversamos por uns 15 minutos como se fôssemos amigos de longa data. Eles encheram os olhos de lágrimas ao lamentarmos a onda de antissemitismo que deveria envergonhar a civilização ocidental. Um grande abraço para Boaz Mordechai e Orit Hanna, ambos com 67 anos. Foi muito bom o nosso encontro. E já fica o aviso: evitem atravessar a nado o Rio Lima e podem molhar o celular, pois o aparelho é a prova d’água, coisa que descobri depois de tomar o mencionado caldo.

 

Marcio Fernandes é jornalista

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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6 comentários em "Tomei um caldo tão grande do Rio Lima e quase fui parar no repouso dos fantasmas afogados"

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