sábado, 27 de julho de 2024

Tudista, o senhor do conhecimento espontâneo

 

Marcio Fernandes — O tudista é aquele cara particularmente antipático que tem uma teoria pronta ou um conceito acabado sobre tudo. Tudo mesmo! Física nuclear, transplante de fígado, melhor rota de escalada do Monte Roraima, métodos não agressivos de extração da casca do Sobreiro para fabricação de rolha etc. Inconveniente, o tudista interrompe aquela conversa agradável para acrescentar opinião indesejada e de superficialidade incontida.

 

Para ser um tudista, você precisa de rigorosamente nada. Nem formação acadêmica nem notório talento. Por ser um campo magnético da proficiência inata, o tudista tem o diferencial do horror ao estudo e ao livro. As citações, a síntese das grandes teorias e o raciocínio determinante são obras do ouvir dizer melhorado, que o tudista repassa com prodigalidade e adição de detalhes inusitados. Este é o tudista clássico. Naturalmente adepto do menor esforço, pois a prática da razão generalizada não admite suor cognitivo.

 

Por outro lado, há o tudista sem talento natural, que depende de uma atividade derivada para chegar lá. Então, o indivíduo vai à biblioteca, enfia dois dedos em uma tomada e, passados alguns segundos eletrizantes, sai pleno de prateleiras de livros na memória. Outro, para virar jornalista, lambe a tinta dos jornais saídos da rotativa umas três vezes por semana. Pronto para o ofício, caso incorpore algumas palavras em inglês, pode ser também publicitário e liderar um brainstorm.

 

A prática do tudismo não se apoia em uma doutrina, nem se filia a corrente ideológica. Tampouco é uma invenção da internet. Isto é até o ofensivo, pois o tudista vai dizer que a tecnologia surgiu quando no Paleolítico o homem, ao friccionar seixos de sílex, inventou o fogo. O tudista atualmente entende muito de pilates e inteligência artificial. Percebe os aromas das terras altas da Rioja em vinho da Serra Catarinense. Ele põe defeito no metrô de Londres e acha que existe espaço para a convivência entre analógico com o digital. É só uma questão de contextualizar e criar uma narrativa.

 

Nada há nada mais entediante no tudista do que a cruzada contra atividade pecuária em nome do combate ao aquecimento global. O cara tem até o cálculo da redução de CO² caso fossem varridas as vacas do planeta. Apesar da crueldade, acredita que a gratidão está origem das espécies e que um até um protozoário tem o direito a vida. Além das platitudes, o tudista sabe tudo de Direito Constitucional e acredita que responsabilidade fiscal é uma ação da elite contra os pobres. Na religião, é ecumênico. Respeita todas as crenças, mas acha que o Brasil é muito mais yamanjá do que a eucaristia. Chora junto com o repórter de  em resgate de cachorro vira-lata em situação de abandono pelo Corpo de Bombeiros.

 

O tudista tem certeza de que a depressão é fruto de um processo histórico que acua a civilização ocidental por conta do desconhecimento do ser interior e pode te prescrever ótimo medicamento para vesícula, caso você tenha rompido um ligamento no joelho. Comprar um produto da China para ele é fator de combate ao imperialismo americano. Em termos de turismo, afirma que é muito interessante ir ao Equador para sentir a pobreza de perto sem os estereótipos da Favela da Rocinha.

 

O tudista é ao mesmo tempo um comissionado da simpatia franca e do antagonismo veemente. Para ele, o Brasil é um misto de encontros e desencontros em uma atmosfera subjetiva, próprio das civilizações dispersas no processo histórico.  Ele é a favor de derrubar as estátuas dos bandeirantes, da revisão da literatura racista do Monteiro Lobato e gostou tanto da revogação da Ordem do Mérito Princesa Isabel que acha justo Carlos Mariguella substituir Duque de Caixas no patronato do Exército.

 

Na minha época de estudante já exista o tudismo, mas sem a generalidade de hoje. O tudista era voltado mais à atividade artística. Não é de agora que aparecem fotógrafos que se iniciam no protesto visual em exposição sobre os povos originários. Já havia naquele tempo o artista plástico que rompia com o academicismo para estrear em uma nova leitura do cubismo. Como hoje, o chef que pratica a gastronomia molecular com esturjão e gengibre.

 

Eram teatrólogos ausentes da dramaturgia. Cineastas geniais de conversa. Escritores de uma pobreza poética de chorar. Jornalistas por auto proclamação etc. Havia no meio uma figura curiosa, que atuava no apoio ao tudista. Era a produtora. Adepta da ocupação simulada, tinha grande prestígio por ter desenvolvido projeto com o Caetano, participado do Teatro Oficina e ficado com Plínio Marcos. Aliás, ter um projeto é a alma do tudismo. Ele nunca vai sair do papel, mas é a base desta autoridade do conhecimento espontâneo.

 

Marcio Fernandes é jornalista

 

Ilustração: João Colagem

 

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

9 comentários em "Tudista, o senhor do conhecimento espontâneo"

  • Avatar Mary celen rezende disse:

    Verdade, adorei essa reportagem disse todo do tudista, mas quem não tem um pouco de saber tudo? 👏👏👏👏

  • Avatar Noemy Faria disse:

    Boas e sonoras risadas, durante esta leitura. A medida que ia lendo, me vinha a imagem viva de alguém, o literalmente “chato”. E olhe, me vieram dezenas deles. Nunca vi tão honesta narração de um personagem que está juntinho de nós. Obrigada, Marcinho❤️💕💕

  • Avatar Hulda disse:

    Penso que ao chegarmos nos 60 ou 70 anos de idade temos muito do tudista . A diferença é a “chatisse”!

  • Avatar Marcia Olivia disse:

    Excelente leitura que tive. Todos temos um pouco.
    Parabéns!

  • Avatar Isabel Coelho disse:

    Não me ocorreu na memória ( que não é primorosa) nenhum tudista🙏…mas já o odeio e estou cheia de falta de paciência🥴 com ele!

  • Avatar Joveny S.Candido de Oliveira disse:

    Marcio, sua descrição do tudista e correta. Lendo seu texto vem-me à memória os que tive oportunidade de topar vida afora. Obrigado por refrescar- as ideias.

  • Avatar Angelita disse:

    Parabéns Márcio, pelo adiantado da idade me vejo um pouco tudista, espero não estar sendo acompanhada pela chatice.

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