segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Um desvio estratégico com direito a sensacional água de balde

Marcio Fernandes – Alta Via 1, dia 3 — Era para eu ter acordado meio desacorçoado pelos perrengues na longa noite de frio e chuva na minha barraca, também conhecida como Sarcófago das Dolomitas. A verdade é que estava muito animado, especialmente depois que a proprietária do Refúgio Lavarella nos autorizou a fazer régio café da manhã.
Forcei amizade pra descolar um banho remunerado. Não rolou mesmo que eu falasse fluentemente alemão, primeiro idioma da maioria dos refúgios da Alta Via 1 devido à proximidade histórica e geográfica com a Áustria.

 

 

O sol apareceu logo nas primeiras horas do dia, meio encoberto por nuvens volumosas, sinal de que não iria chover em nossa rota. Houve um pequeno desnível positivo da trilha no início. Depois andamos uns 70% do trajeto de quase 11 km até Campanna Alpina em terreno plano a 2.080 metros de altitude. Este trecho atravessou um vale muito verde de gramíneas, pasto de vacas qualificadas, e ofereceu até agora as montanhas mais lindas das Dolomitas Orientais.

 

 

De longe avistamos a primeira geleira viva da travessia da Alta Via 1 na Montanha Marmolada. A caminhada franca e plena de entusiasmo nos levou a Fontanes de Giaric, onde há um mirante especular de um profundo desfiladeiro coberto de coníferas. Foi lindo, mas o desnível negativo de 349 metros em pouco mais de um quilômetro de extensão é algo insano e que exigiu muita prudência. Os joelhos tiveram de ser trabalhados com alguma técnica de descida para não serem moídos na pressão do tronco e da mochila sobre as pernas.

 

 

Antes de chegar ao Malga di Gran Fanes, espécie de hotel fazenda bem rústico, dei uma parada boa às margens do Lago Limo para fotografar e dar um tipo de lavada na cabeça só pra lembrar que existe uma coisa chamada banho e que este hábito altera tudo em termos de levantamento do astral. No refúgio, o cardápio era em alemão e italiano. Pedi pro Maurizio traduzir o que era um dos sucos. Ele estava estudando o mapa e explicou, com a língua meio enrolada e com fraca paciência, que se tratava de fruta típica das Dolomitas. Ao final recebi em copo grande do próprio suco ralo de groselha dos tempos que eu era criança. Valeu, pois foi glicose na veia.

 

 

Já na noite anterior no interior da barraca tive a percepção de um problema grande. A lente dos óculos havia se soltado da armação e isso simplesmente me tiraria da Alta Via 1. Os óculos de sol, mesmo com prescrição médica, têm uma função secundária. Já o problema do Maurizio foi nos dos pés. Resumo da Ópera: tivemos de procurar um vilarejo para reparar os óculos e descolar um socorro para Maurizio. Eu resolvi meu problema imediatamente em ótica. Já nosso alpinista profissional procurou uma solução não exatamente médico-farmacêutica.

 

Nesta época do ano qualquer hospedagem mais ou menos na região de Cortina D’Ampezzo custa uma fortuna. Consegui um hotel meia boca em San Vito di Cadore com sensação íntima de 5 estrelas. Havia cama com lençol limpo, chuveiro e outras funcionalidades não encontradas nos matagais das altas montanhas das Dolomitas, além simpático recepcionista peruano.

 

Passei a noite em alto estilo e no outro dia retomamos a Alta Via 1 uma etapa à frente das Montanhas Cinque Torri. Para chegar lá era preciso pegar um teleférico. Não entro em um bicho desses nem para ganhar uma nota de 13 dólares em premiação entregue pessoalmente pela Janja.

 

Espero que amanhã pelo menos haja internet na volta à alta montanha para conseguir enviar matérias diariamente. Ia me esquecendo de mencionar que tomei um piau da região. Vinho cabernet franc, meio-seco, super água de balde, mas sensacional para quem passou três dias jogado no sereno das Dolomitas e acredita que a caladinha, particular ressaca, é uma dádiva dos Alpes Italianos.

 

Texto e fotografias Marcio Fernandes

Avatar

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

As opiniões emitidas nos textos dos colaboradores não refletem necessariamente, a opinião da revista eletrônica.

4 comentários em "Um desvio estratégico com direito a sensacional água de balde"

  • Avatar Americo disse:

    Parabéns pelas fotos. Essas belas montanhas me fazem lembrar de Denver no Colorado (EUA), onde morei por uns 04 anos no passado. A cidade fica no sopé das “Montanhas Rochosas” que os Americanos chamam carinhosamente de ‘Rockies”. É uma região de pradarias, gramíneas a perder de vista, onde antigamente manadas imensas de búfalos pastavam.

  • Avatar Clara Accioly disse:

    Que belas imagens!!! O seu senso de humor ao dar nomes aos seus acessórios de viagem, é admirável. Consigo imaginar o prazer do banho, após ser tão desejado. Força e fé 👣

  • Avatar Juan disse:

    Boa jornada pra vocês!

  • Avatar Noemy Faria disse:

    Marcinho, adorei a Montanha Marmolada, acredito que passaria uma temporada por lá.
    Como sempre o texto nos leva a acompanhar o seu trajeto. Senti a agonia da falta de um banho. Parabéns!

Deixe uma resposta