Um dia de muitos tempos em Marrakech
Marcio Fernandes – O dia começou como o esperado em Marrakech. Na mais famosa cidade do Marrocos, situada no centro do país africano, por volta das 8 horas da manhã o termômetro marcava 36 graus. Como o Deserto do Saara está logo ali, o calor é seco e franco como no Planalto Central do Brasil em agosto e setembro. Depois de café da manhã simples e honesto em riad, espécie casa senhorial convertida em hotel, fomos explorar a Medina da cidade.
Como sou louco por mercados, o primeiro conhecimento da região foi dedicado ao souk, bazar de produtos artesanais onde se encontra de tudo como tapetes, artigos em cerâmica e rica joalheria em prata. Comprei só bálsamo pra coluna e uns cristais de inalação, remédio grande pra renite. Nem tudo é original. Hoje a China, pra variar, é grande fornecedora de produtos falsificados que os mercadores juram terem sido produzidos pelos beberes no alto do Monte Atlas, cordilheira que corta o Marrocos no sentido Oeste-Leste.
Nas primeiras horas da manhã o souk estava vazio, o que foi bem interessante em termos de conforto a se considerar que as ruelas imundas são bem estreitas. Não durou muito e logo o ambiente foi tomado de gente.
As ruazinhas lindas que deveriam ser exclusivas a pedestres são também via para inúmeros indivíduos absolutamente maloqueiros e inconsequentes a trafegar em motonetas velhas em alta velocidade. Os caras são os donos do pedaço e o melhor é sair da frente, pois eles têm inexplicável prioridade e te atropelam mesmo.
Apesar deste ponto negativo, o povo marroquino é no fundo muito solícito, gentil e humilde. A situação de pobreza é generalizada. Ao contrário do que tolamente apregoa o pessoal adepto da causa social da violência, aqui a chance de alguém colocar uma arma de fogo em tua cabeça é zero. Não tem PCC nem milicianos.
Há assédio comercial dos mercados, mas nada de agressão sequer verbal a mulheres. Agora, aqui vigora a cultura da pechincha. Até para comprar uma garrafa de água. Se você fez um bom negócio ou não com vendedor de tapetes é algo a ser estudado. Penso que não.
O péssimo comportamento dos motociclistas só tem paralelo com os condutores de espécie de triciclo de carga, também em ritmo de desrespeito total com os pedestres. A confusão se instala quando há o cruzamento destes veículos com lentos carroceiros e aí começa um xingatório em árabe e o bicho pega.
Marrakech é muito suja mesmo e à medida em que a temperatura ultrapassa os 40 graus vem inexoravelmente aquele aroma de excremento milenar de gatos vadios com chorume, também conhecido como caldo de lixo. Tudo muito orgânico, o que me fez qualificar a cidade de Chiqueiro do Aquecimento Global. Porém, há um outro mundo na cidade no chamado Mercado de Especiarias. Meu Deus! Nas ruelas, os aromas de vegetais e minerais raros se misturam para criar uma atmosfera deliciosamente agradável, sem falar nas cores e formatos dos temperos.
No fim do Mercado de Especiarias começa o Mellah, assim nominado o que foi por séculos o bairro judaico das cidades marroquinas. Eles tiveram uma convivência absolutamente integrada com os muçulmanos, mas depois da independência do Marrocos da França, em 1956, foram na imensa maioria obrigados a deixar o país e viver em Israel. Ainda são conservados a sinagoga, de interior todo em azul, e o cemitério de centenas de lápides brancas, hoje sob administração de voluntários israelenses.
No pátio da sinagoga há um centro cultural super interessante com exposição audiovisual e sala de mostra fotográfica. Encontrei uma galera muito bacana de Israel, especialmente Daniel, que me contou estudar português e estar de olho em uma cearense. Depois tive uma palestra instrutiva com o rabino Yashar Levy. Ele tem amigos em São Paulo, se orgulha de ser um remanescentes da antiga Mellah, bem como de ter sido recebido pelo Rei Maomé VI. O monarca marroquino é um estadista de muita visão estratégica de futuro e há uns seis anos promove distensão dos conceitos radicais dos vizinhos árabes para manter relações diplomáticas de alto nível com Israel.
Por volta das 14 horas, eu e Britz decidimos ir a restaurante tradicional de Marrakech. A temperatura tinha subido para os 44 graus, com sensação térmica de 50 por conta do ar condicionado bem velho de guerra, que suava pra dar conta do serviço e o tajine de carneiro servido em recipiente fervente. Ainda tomei um chá de hortelã, marca registrada do Marrocos, que não esfriava, mas desceu assim mesmo.
A gente estava de saída do riad para dar mais uma explorada na imensa Praça Jemaa el Fna quando rolou uma chuva mais pra fraca. Britz tem antipatia de chuva e fui sozinho comprar suco de romã pra ela e aproveitei para pedir uma vitamina de banana, abacate e laranja. Dei parada em banca de castanha e trouxe um meio saco de sabores de canela, anis e outra figura que não identifiquei o sabor.
Do nada, o tempo fechou e veio tempestade de areia a envermelhar o céu de Marrakech. Foi barraca voando pra todos os lados, senhoras a perder parte da cobertura 100% das burcas e os encantadores de serpentes em peleja grande pra recolher as najas. Eu socorri o cara da barraca de suco na cata dos pêssegos, que foram parar no chão. Assim foi um dia de muitos tempos na linda Marrakech, que acordou e foi dormir na altura dos 40 graus.
Fotografias e texto Marcio Fernandes
Deliciosa descrição da misteriosa Marrakesh.
Muito obrigado pelo comentário, Flávio!
Que bela lição sobre o Marrocos. Belo e limpo texto. Parabéns, Marcinho❤️❤️❤️Com certeza a viagem ficou muito mais agradável com a linda Britz aí. Amo vcs❤️
Britz quem insistiu em vir pra cá. Só no álcool gel limpando o Chiqueiro do Aquecimento Global! Delícia de viagem.
Márcio. Viajar para uma região desértica em pleno verão no hemisfério norte? Parece que você quer testar os seus limites biológicos. Vai com cuidado meu amigo!
Já passei por coisa muito pior, querido, Américo!
O importante é conhecer o local bom e o ruim todo País existe os lados o importante é o conhecimento real e tira disso tudo a sabedoria vc e doutorado Dr Márcio Fernandes !! Meus parabéns novamente pelo texto maravilhoso e quem tira Proveito disso tudo somos nós mesmo parabéns!
Obrigado Dona Leda! O problema é o catiretismo!