sábado, 12 de outubro de 2024

Um dia de muitos tempos em Marrakech

 

 

Marcio Fernandes – O dia começou como o esperado em Marrakech. Na mais famosa cidade do Marrocos, situada no centro do país africano, por volta das 8 horas da manhã o termômetro marcava 36 graus. Como o Deserto do Saara está logo ali, o calor é seco e franco como no Planalto Central do Brasil em agosto e setembro. Depois de café da manhã simples e honesto em riad, espécie casa senhorial convertida em hotel, fomos explorar a Medina da cidade.

 

Como sou louco por mercados, o primeiro conhecimento da região foi dedicado ao souk, bazar de produtos artesanais onde se encontra de tudo como tapetes, artigos em cerâmica e rica joalheria em prata. Comprei só bálsamo pra coluna e uns cristais de inalação, remédio grande pra renite. Nem tudo é original. Hoje a China, pra variar, é grande fornecedora de produtos falsificados que os mercadores juram terem sido produzidos pelos beberes no alto do Monte Atlas, cordilheira que corta o Marrocos no sentido Oeste-Leste.

 

Nas primeiras horas da manhã o souk estava vazio, o que foi bem interessante em termos de conforto a se considerar que as ruelas imundas são bem estreitas. Não durou muito e logo o ambiente foi tomado de gente.

 

 

As ruazinhas lindas que deveriam ser exclusivas a pedestres são também via para inúmeros indivíduos absolutamente maloqueiros e inconsequentes a trafegar em motonetas velhas em alta velocidade. Os caras são os donos do pedaço e o melhor é sair da frente, pois eles têm inexplicável prioridade e te atropelam mesmo.

 

Apesar deste ponto negativo, o povo marroquino é no fundo muito solícito, gentil e humilde. A situação de pobreza é generalizada. Ao contrário do que tolamente apregoa o pessoal adepto da causa social da violência, aqui a chance de alguém colocar uma arma de fogo em tua cabeça é zero. Não tem PCC nem milicianos.

 

 

Há assédio comercial dos mercados, mas nada de agressão sequer verbal a mulheres. Agora, aqui vigora a cultura da pechincha. Até para comprar uma garrafa de água. Se você fez um bom negócio ou não com vendedor de tapetes é algo a ser estudado. Penso que não.

 

O péssimo comportamento dos motociclistas só tem paralelo com os condutores de espécie de triciclo de carga, também em ritmo de desrespeito total com os pedestres. A confusão se instala quando há o cruzamento destes veículos com lentos carroceiros e aí começa um xingatório em árabe e o bicho pega.

 

Marrakech é muito suja mesmo e à medida em que a temperatura ultrapassa os 40 graus vem inexoravelmente aquele aroma de excremento milenar de gatos vadios com chorume, também conhecido como caldo de lixo. Tudo muito orgânico, o que me fez qualificar a cidade de Chiqueiro do Aquecimento Global. Porém, há um outro mundo na cidade no chamado Mercado de Especiarias. Meu Deus! Nas ruelas, os aromas de vegetais e minerais raros se misturam para criar uma atmosfera deliciosamente agradável, sem falar nas cores e formatos dos temperos.

 

No fim do Mercado de Especiarias começa o Mellah, assim nominado o que foi por séculos o bairro judaico das cidades marroquinas. Eles tiveram uma convivência absolutamente integrada com os muçulmanos, mas depois da independência do Marrocos da França, em 1956, foram na imensa maioria obrigados a deixar o país e viver em Israel. Ainda são conservados a sinagoga, de interior todo em azul, e o cemitério de centenas de lápides brancas, hoje sob administração de voluntários israelenses.

 

No pátio da sinagoga há um centro cultural super interessante com exposição audiovisual e sala de mostra fotográfica. Encontrei uma galera muito bacana de Israel, especialmente Daniel, que me contou estudar português e estar de olho em uma cearense. Depois tive uma palestra instrutiva com o rabino Yashar Levy. Ele tem amigos em São Paulo, se orgulha de ser um remanescentes da antiga Mellah, bem como de ter sido recebido pelo Rei Maomé VI. O monarca marroquino é um estadista de muita visão estratégica de futuro e há uns seis anos promove distensão dos conceitos radicais dos vizinhos árabes para manter relações diplomáticas de alto nível com Israel.

 

Por volta das 14 horas, eu e Britz decidimos ir a restaurante tradicional de Marrakech. A temperatura tinha subido para os 44 graus, com sensação térmica de 50 por conta do ar condicionado bem velho de guerra, que suava pra dar conta do serviço e o tajine de carneiro servido em recipiente fervente. Ainda tomei um chá de hortelã, marca registrada do Marrocos, que não esfriava, mas desceu assim mesmo.

 

A gente estava de saída do riad para dar mais uma explorada na imensa Praça Jemaa el Fna quando rolou uma chuva mais pra fraca. Britz tem antipatia de chuva e fui sozinho comprar suco de romã pra ela e aproveitei para pedir uma vitamina de banana, abacate e laranja. Dei parada em banca de castanha e trouxe um meio saco de sabores de canela, anis e outra figura que não identifiquei o sabor.

 

Do nada, o tempo fechou e veio tempestade de areia a envermelhar o céu de Marrakech. Foi barraca voando pra todos os lados, senhoras a perder parte da cobertura 100% das burcas e os encantadores de serpentes em peleja grande pra recolher as najas. Eu socorri o cara da barraca de suco na cata dos pêssegos, que foram parar no chão. Assim foi um dia de muitos tempos na linda Marrakech, que acordou e foi dormir na altura dos 40 graus.

 

Fotografias e texto Marcio Fernandes

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Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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8 comentários em "Um dia de muitos tempos em Marrakech"

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