sábado, 15 de fevereiro de 2025

Um lugar encantado chamado Alcoutim

 

Marcio Fernandes – Bem no Sul de Portugal, às margens do Rio Guadiana, existe uma vila de 2,5 mil habitantes, de casas muito brancas. Em uma loja de secos & molhados, senhorinha de uns 80 anos dava notícia por telefone de que no fim da tarde de ontem havia uma “chuva miudinha e bem caída, mas sem vento”. Esse lugar se chama Alcoutim e, mesmo debaixo da garoa persistente, decidi explorá-la para começar a viagem pelas terras encantadas do interior do Algarve.

 

A vila registra a presença humana desde o Neolítico (5.000 – 3.000 a.c), fez parte do Império Romano e foi ocupada pelos visigodos. O nome Alcoutim deriva do árabe e significa falcão-peregrino, já que por 500 anos a região esteve na geografia da expansão islâmica na Península Ibérica. Em 1238 foi integrada ao território português após a Reconquista Cristã e a consequente expulsão dos invasores fiéis a Maomé. Os mesmos que promoveram o Massacre de 7 de Outubro em Israel.

 

 

Praticamente só há vestígios das muralhas medievais que protegeram a vila por vários séculos da ameaçadora Espanha, localizada a poucos metros de distância na margem oriental do Rio Guadiana. Mas elas estão lá, escurecidas pelo tempo e imponentes, a emoldurar o que restou do castelo erguido durante o reinado de Dom Dinis (1279 – 1325).

 

O Rio Guadiana ainda é uma via estratégica pelas funções econômica e ambiental que exerce na fronteira dos dois países. Hoje, em vez de ser um marco divisório de desconfianças geopolíticas, é símbolo da integração de Portugal e Espanha, de quem os lusitanos antigamente não queriam saber nem de bons ventos nem de casamentos que por ventura vinham do vizinho incômodo.

 

A doçaria portuguesa é alguma coisa de extraordinário sabor e eu me rendi à espécie de bolo de amêndoas enquanto me protegia da chuva que ia e vinha. A enxurrada dava viço especial a pouca luz do céu cinzento sobre as ruelas estreitas e calçadas de paralelepípedo com aroma de roseirais. Eu passo em frente à agência dos Correios e me sinto amargurado por não ter um destinatário para carta que escreveria para relatar a aventura de mochileiro pelas terras algarvias.

 

 

Ao circular a Ermida de Nossa Senhora da Conceição, identifico que estou na Travessa do Jardim da Infância. Imaginei que ela poderia me levar para algum lugar do meu passado distante e talvez encontrar minha mãe perdida na vila banhada pelo Rio Guadiana. Ela era branca como as casas do lugar e tinha a alma portuguesa herdada dos antepassados que colonizaram o Brasil.

 

 

No Algarve, as casas são baixas, na maioria retangulares, e rigorosamente todas têm em destaque uma chaminé solitária muito bem desenhada. Já se aproximava do horário do jantar e o aroma forte de alho frito emergiu de uma residência comprida com portas e janelas pintadas de verde profundo. Certamente ali estava sendo preparada patanisca de bacalhau que seria servida com o vinho encorpado feito com a uva Touriga Nacional colhida no parreiral caseiro.

 

 

Eu sempre tive alguma fascinação por paredes descascadas, pois elas evidenciam verdades arqueológicas de tijolos seculares expostos à falta de confidencialidade do tempo. Logo que a chuva deu uma breve trégua, me chamou a atenção a cara de felicidade do beiral da casa número 4 localizada na Rua da Misericórdia. Próximo dali encontro um dos inúmeros pés de mexerica carregado de frutas molhadas da chuva miúda e bem caída.

 

 

Em Alcoutim, encontrei a exposição pública de valores sociais e econômicos regulamentados pelo Estado Novo, nome cordial dado oficialmente à ditadura salazarista que governou Portugal por 41 anos desde a Constituição de 1933 até o 25 de Abril de 1974. Nos cartazes, estavam a proibição do beijo na boca em público, do uso do biquíni e da minissaia, da venda de Coca-Cola e de isqueiros. Não é à toa que o artista organizador da mostra deu o nome ao trabalho de “O fruto proibido é o mais apetecido”. Eu, que não gosto de nenhum tipo de ditadura, fui admirar a noite cair e fotografar a Espanha do outro lado do Rio Guadiana.

 

Marcio Fernandes: texto e fotografias

Este post foi escrito por: Marcio Fernandes

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