A metanarrativa do preconceito
Eduardo Luis Correia – Em linguística e na filosofia há uma expressão, “metanarrativa”, que é aquele pensamento por trás da narrativa em si. Algo que não é explícito, mas percebe-se ao transcender o sentido estrito daquilo que é narrado. Desta forma, revela-se muito tanto do que se pretende dizer quanto daquele quem diz. Isto posto, o artigo “Enfim, temos o nosso Nero”, publicado aqui neste espaço digital, é por demais significativo em sua metanarrativa.
Nem é o caso de contraditar “interpretações” da História, digamos, bastante “livres”. Livres, inclusive, da própria História como ciência. Mas é importante pontuar que é bastante improvável que o imperador Nero tenha ateado fogo em Roma, por descuido ou não, para criar uma nova cidade mais a “sua imagem”.
Historiadores da época, como Tácito, e outros mais contemporâneos, apontam que Nero sequer estava em Roma quando aconteceu o incêndio. Destacam também que incêndios eram comuns na capital do império em razão do material utilizado na construção das casas e prédios e do hábito dos moradores usarem o fogo para aquecimento interno de seus domicílios.
Nero, é verdade, foi polêmico, sanguinário, incestuoso e mentalmente perturbado. Nada muito diferente de boa parte da nobreza antiga de vários reinos e impérios, caso de seu próprio tio, o não menos “polêmico” Calígula. Mas Nero, o último imperador da dinastia júlio-claudiana, também foi bastante popular em determinado momento de seu reinado e liderou, com vitórias, o poderoso e lendário exército romano em várias guerras.
A ideia de que Nero, portanto, foi um maluco incendiário a pôr fogo na própria cidade que governava, tocando poeticamente sua lira, não passa de um “mito”, propagado desde então por seus inimigos políticos da época, o que incluía poetas, historiadores e narradores vários.
Curiosamente, ou não, a palavra “mito” nos tempos recentes voltou à moda e foi associada ao ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, o neofascista tropical que, este sim, tentou tacar fogo no próprio país para garantir-se no poder.
Jair Messias é chamado de “mito” por suas posições diretas, sem papas na língua e tidas por corajosas da parte de seus seguidores. Mas não é o “mitômano” Bolsonaro o foco principal aqui. Sequer é o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alvo dos comentários do artigo em tela que o compara ao imperador romano.
O interesse maior no artigo é o quanto é revelador do preconceito, desinformação e de um elitismo cafona do autor. O texto, pretensamente irônico, não passa de uma enxurrada de bobagens encadeadas a partir de meias-verdades, deslizes verbais de Lula e interpretações que só podem ser concebidas a partir da má-fé do colunista.
O autor utiliza linhas e linhas para criticar Lula por este ter dito que na pandemia do Covid morreram 700 milhões de brasileiros, sendo que o país conta com cerca de 203 milhões de habitantes. Acreditar que o presidente do país em seu terceiro mandato não saiba o número de brasileiros no território do país, afirmando que só de vítimas da pandemia, morreram mais de três vezes o número total da população é, no mínimo, o que convencionou-se chamar de “desonestidade intelectual”.
Sabe-se, por registros oficiais, que o Brasil perdeu cerca de 700 mil pessoas, muitas em parte pela negligência e incompetência do desastroso e criminoso governo Bolsonaro. Apegar-se a um erro de léxico como se fosse aritmético (mil por milhão) é, portanto, muita má vontade do autor com o presidente Lula. Até aí, nada de novo dado o perfil do autor.
O“ácido” colunista discorre sobre Lula ter dito ser o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, um democrata. Pode-se concordar ou não com Lula sobre isso em termos políticos, da estrutura político-partidária do país vizinho, mas não se pode desconsiderar que existem eleições na Venezuela, acompanhadas por observadores da ONU e cujos resultados são acatados pela população e instituições venezuelanas.
Maduro pode ser tido como um líder autoritário (o que, de fato, é), um ditador – um exagero se comparado a verdadeiros ditadores que a História nos mostra -, mas isso enseja um debate mais amplo e deve-se ter em conta que não Lula não está sozinho em sua opinião sobre o colega sul-americano. O laureado diretor de cinema estadunidense Oliver Stone que o diga.
Mas interessante mesmo e retomando a questão da metanarrativa mencionada aqui no início são as adjetivações escritas pelo autor: “presidemente”, “ignorácio”. Desconte-se a pretensão, em vão diga-se, de conter algo de humor nisso, o que sobra é apenas preconceito rasteiro e uma soberba sustentada apenas pelo ego do colunista.
O mais engraçado é o autor mencionar como exemplo o ex-vice presidente e presidente golpista Michel Temer – aquele que vai ocupar as páginas dos livros da História como uma espécie de Joaquim Silvério dos Reis deste milênio. E se Lula escorregou ao trocar mil por milhões, o que dizer do “poeta” ex-presidente – famoso pelo uso e abuso de mesóclises e quetais – que num evento há poucos anos na Rússia referiu-se aos empresários daquele país como “soviéticos” – isso quando a União Soviética já não existia mais há mais de três décadas .
Com certeza, um deslize mental de Temer como o cometido por Lula. Mas que não permite taxar o ex-presidente, que ocupou a cadeira presidencial entrando pela porta dos fundos, de ignorante, burro, néscio ou algo do tipo. Um ato falho a ser colocado apenas na prateleira das bobagens engraçadas ditas por tantas autoridades e celebridades do país…e nada mais.
Por fim, ao permitir-se ver o mundo por uma visão “holística” – aquela que pretende ver juntar o todo a partir da junção das várias partes -, como apregoa o autor em relação a si próprio, o que se tem ao fim e ao cabo é um amontoado de fabulações sem sentido amarradas a fórceps para ter algum sentido de começo, meio e fim. Mas que é tão somente um desfilar de pensamentos desconexos, eivados de preconceitos, equívocos de informação e arrogâncias, emoldurados por um muito – e bota muito nisso – duvidoso senso de humor.
Eduardo Luiz Correia – jornalista e bacharel em História. Professor de comunicação social e especialista em gestão da comunicação.
Lustra o texto: Metanarrativa de um recuerdo incompleto by Osiel Guerrero (2023); paiting acrylic, pastel in canvas – Singulart